Na noite de 13 de março de 2016, nos arredores de La Clayette, a cerca de 400 quilômetros de Paris, Valérie Bacot, então com 35 anos, mãe de quatro filhos, disparou uma pistola, de dentro de uma minivan, contra a nuca do motorista. O veículo parou no meio do caminho. Trêmula, ela desceu e abriu a porta onde o homem se apoiava. Não precisou fazer força: o corpo escorregou e caiu estatelado no chão. Horas depois, com a ajuda de dois de seus filhos adolescentes e de um amigo, o peso morto de 60 anos de idade seria enterrado em cova rasa em um bosque próximo, para de lá só ser retirado meses depois, quando a polícia recebeu uma denúncia. Confrontada pelas autoridades, Valérie confessou que havia matado o marido, pai dos dois meninos que, depois, jogariam o cadáver na vala. Ela dizia estar arrependida, mas também que preferia passar o resto da vida na prisão se a alternativa fosse continuar sob o jugo de Daniel Polette, o homem que a estuprou, a engravidou e a prostituiu.
Valérie foi submetida a duas décadas de cruel humilhação pelo companheiro agressor. Seu corpo foi vilipendiado e sua autoestima, dilapidada, em um ciclo de violência que se repete com milhares de mulheres em todos os cantos do mundo. Valérie, no entanto, sobreviveu para contar sua história em um livro lançado em maio deste ano, pouco antes de ser julgada pelo crime que cometeu. Na autobiografia Todo Mundo Sabia (ainda sem versão em português), ela relata sua história na esperança de expurgar a dor e de alertar o mundo sobre atrocidades que, neste instante, ocorrem atrás de alguma porta, sem que autoridades, assistentes sociais, parentes ou vizinhos façam algo para impedir.
O pesadelo de Valérie, filha do meio de três irmãos, começou em 1993, quando ela tinha apenas 12 anos. Seu pai, um motorista de ônibus de excursão tão distante quanto as viagens que fazia, nem mesmo protestou quando a ex-mulher trouxe para dentro de casa Daniel Polette, um caminhoneiro nos seus 30 e poucos anos. A atenção de Polette para com a enteada logo passou de uma despretensiosa ajuda com o dever de casa para cremes entregues a ela durante o banho, até chegar ao estupro, que depois virou hábito recorrente, silenciado com ameaças veladas. A mãe, movida a álcool e pílulas para dormir, nada fazia para impedir os ataques, mas alguém percebeu os sangramentos, o que levou Polette à delegacia e, posteriormente, à prisão. Tudo poderia ter terminado ali se o sistema tivesse tomado providências para proteger a menor, mas não foi o que aconteceu. Valérie chegou a ser forçada pela própria mãe a visitar o padrasto na prisão, situação tão atroz que fez a menina acreditar que tudo de ruim que estava acontecendo era culpa dela.
Para piorar, a Justiça entregou de bandeja a vítima ao perpetrador: três anos depois, ele estava de volta, pronto para se fingir de bom-moço e outra vez estuprar Valérie, que ficou grávida aos 17 anos. Como parte da vingança por ter ficado preso, Polette convenceu parentes de que a “vergonha da família” — assim ele se referia à jovem — deveria ser levada para outra cidade, onde ele assumiria sua responsabilidade com a enteada. Aquela foi a senha para o mergulho nas trevas. Grávida quatro vezes sucessivas, Valérie era avisada por seu algoz de que as crianças estariam bem enquanto ela se comportasse. E, de fato, as crianças foram poupadas, mas não a mãe, que passou pelo processo de “coisificação”, quando um ser humano é transformado em objeto. Polette espancava Valérie, às vezes abrindo sua testa e quebrando seu nariz. No ápice da embriaguez, ele gostava de puxar o gatilho de uma arma contra a cabeça de sua prisioneira, sempre sinalizando que, da próxima vez, ela poderia estar carregada.
Com quatro crianças em casa, as despesas cresceram, mas Polette tinha a solução. Como caminhoneiro, ele conhecia gente que pagaria bem para ter relações com uma mulher bonita. Assim, transformou a traseira de sua van em motel, onde Valérie era explorada sexualmente enquanto ele assistia a tudo — até que, naquela noite de 2016, depois de ser novamente violentada por um estranho, a recordação fugaz de poucos dias antes atingiu Valérie como um raio: ela viu, nos olhos de sua filha adolescente, o mesmo medo que sentiu quando tinha aquela idade. Dentro de si, Valérie sabia que Polette avançaria sobre a menina. Assim, em um surto entre o consciente e o inconsciente, ela pegou a arma que estava no veículo e atirou.
Presa por um ano depois que o cadáver foi descoberto, Valérie ficou em liberdade condicional até o julgamento, ocorrido semana passada. Mais de 700 000 franceses subscreveram um abaixo-assinado exigindo perdão para ela. E a Justiça, que havia falhado lá atrás, acabou por socorrer a ré, libertando-a de forma definitiva, por já ter passado um tempo encarcerada. A reparação, todavia, chegou tarde e parece inútil para apagar todo o sofrimento. Mas ao menos deixou um recado: a omissão também pode ser criminosa.
Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745