VEJA visita a China e mostra poderio econômico do país que receberá Lula
Nação sacode efeitos da reclusão pós-pandemia e volta a produzir, investir e crescer — boa nova para o Brasil, que tem no país seu maior parceiro comercial
Desde o início do ano, os motoristas de Pequim, nos fins de semana, evitam passar pelos arredores da Rua Gongrentiyuchang, ponto de concentração das principais casas noturnas da capital chinesa e de um engarrafamento monstro das 8 da noite às 3 da madrugada. “Gostamos de ficar juntos e estávamos com saudade dessa convivência”, justifica Qiang Chen, estudante de 22 anos, enquanto vira shots de uma bebida adocicada e se espreme junto dos amigos na pista da 13, uma das mais concorridas baladas locais. O clima de euforia se repete no Taikoo Li, um shopping a céu aberto em que os visitantes são saudados por um taikonauta (astronauta chinês) em um enorme telão, e na Wangfujing, calçadão tomado de lojas de marcas internacionais.
ARTIGO: A FORÇA DO BRASIL NA CHINA
OS DILEMAS NO CONFLITO ENTRE TRADIÇÃO E MODERNIDADE
A VIDA VOLTOU AO NORMAL DEPOIS DOS LOCKDOWNS
A 1 200 quilômetros dali, em Xangai, a agitação é a mesma. As pessoas comemoram a volta do famoso Maglev, trem que transporta os passageiros do aeroporto para o centro da cidade deslizando a 300 quilômetros por hora em um colchão magnético. Multidões lotam as ruas, shoppings e praças de alimentação no Centro, e o porto, o maior do mundo, opera 24 horas por dia. Livre das amarras da política de Covid Zero, equivocada tentativa de derrotar o vírus em vez de aprender a conviver com ele, a China pede passagem e, como sempre, tem pressa. A virada se deu em dezembro, bem à moda do Partido Comunista chinês. De uma hora para outra, rigorosos lockdowns e testagens (veja o quadro) deixaram de existir, decretou-se que a luta contra o contágio fora um sucesso e virou-se a página. O dragão chinês, depois de três anos planando perto do solo com as asas tolhidas por restrições sanitárias, arremeteu com a usual eficiência, e os sinais de recuperação econômica são evidentes.
Em janeiro e fevereiro, as vendas no varejo subiram 3,5% em comparação com os índices negativos dos três meses anteriores. A produção industrial aumentou 2,4% no mesmo período e os investimentos em manufatura e infraestrutura, os pilares da economia chinesa, subiram 8% e 9%, respectivamente. Cauteloso, o governo estabeleceu a meta de 5% de crescimento do PIB para 2023, baixa para os padrões chineses, mas ainda assim capaz de impulsionar um terço do crescimento mundial, segundo cálculos do FMI. “Não esperamos um boom de commodities como o que ocorreu na crise financeira de 2008, mas a retomada do crescimento da China vai abrir espaço para todos os tipos de produto e deve impulsionar as economias dos países em desenvolvimento”, diz Louis Kuijs, economista chefe da Standard and Poor’s na Ásia.
É neste cenário de expectativas em alta que o presidente Lula visita a China, entre 26 e 31 de março, imbuído do propósito de situar o Brasil em lugar de destaque na reaceleração daquele que é seu principal parceiro comercial (e de outras 120 nações do planeta). Ele desembarca em Pequim com uma comitiva de cerca de 200 pesos-pesados da política e da indústria, replicando a estratégia da visita a Pequim em 2004, quando, em seu primeiro mandato, lotou um avião com empreendedores ávidos por novos negócios. De lá para cá, a relação comercial entre os dois países cresceu exponencialmente até bater o recorde de 89,4 bilhões de dólares no ano passado (veja no quadro). Atualmente, 22% de todos os produtos agrícolas que a China compra vêm do Brasil, aí incluídos 68% da soja e 73% da carne bovina que partem dos portos nacionais.
Tamanha é a importância desse relacionamento que o cruzado anticomunista Jair Bolsonaro engoliu as ressalvas e apertou a mão de Xi Jinping, o cada vez mais poderoso presidente chinês. Lula, afinado com as esquerdas, chega a Pequim em situação bem mais confortável, reafirmando a parceria estratégica e garantindo que o Brasil não politizará as relações comerciais. Também conta a favor das ambições brasileiras o fato de Xi disputar abertamente o pódio de grande potência com os Estados Unidos e precisar reforçar laços e compromissos no Ocidente. “O cenário internacional está mais hostil para a China. Estabelecer a confiança nas relações bilaterais é importante para que elas sigam estáveis”, diz um diplomata diretamente ligado à organização do evento.
Por tudo isso, Lula será recebido com todas as honras — o protocolo prevê bandeirolas brasileiras adornando a principal avenida da capital e crianças chinesas acenando efusivamente à sua passagem. “Sua visão de governo tem semelhanças com o modelo chinês, como o relacionamento estreito entre Estado e mercado, a ênfase na justiça social e o entendimento de que a ordem mundial depende de múltiplos atores”, observa Wu Hongying, professora do Institutos Chineses para as Relações Internacionais Contemporâneas. Um dos pontos a ser acordados na visita é o de levar o tema do combate à pobreza para a pauta de organismos internacionais. Além das cartas de boas intenções, no mundo prático Lula e Xi Jinping pretendem assinar cerca de vinte acordos comerciais estratégicos que permitam ao Brasil diversificar exportações e alargar o mercado para produtos agrícolas como gergelim, sorgo e noz-pecã. Um antigo pacto de cooperação tecnológica em torno do desenvolvimento de satélites deve abrir caminho para o acesso brasileiro à nova geração de equipamentos com radares acoplados, capazes de monitorar o solo mesmo em dias nublados e combater com mais eficiência o desmatamento da Amazônia. Na escala em Xangai, Lula entregará à ex-presidente Dilma Rousseff a presidência do banco dos Brics — o assento rotativo estava ocupado por Marcos Troyjo, economista indicado por Bolsonaro.
O setor de maiores e melhores oportunidades, porém, é o ambiental. Até pouco tempo atrás, perambular pelas ruas de Pequim era insalubre devido ao ar irrespirável, produto de uma matriz energética atrelada, em 82%, ao carvão e ao petróleo. Até hoje a garganta dos visitantes se ressente do ar seco e todo mundo tem umidificadores (vários) em casa, mas a poluição caiu. O combate às mudanças climáticas custou, mas entrou para o rol de prioridades da China: o governo investe pesadamente em energia renovável, afastou as indústrias mais poluidoras dos centros urbanos e passou a incentivar a substituição da frota por veículos elétricos. Para onde quer que se olhe, há ônibus, scooters, bicicletas e carros movidos a bateria. Seus motoristas recebem uma placa verde e se livram do rodízio que obriga os carros a gasolina a ficar um dia por semana na garagem. Detalhe que impressiona na frota elétrica: apesar do trânsito caótico, as ruas são absolutamente silenciosas.
Em matéria de chance de exportação, o mercado brasileiro faz os olhos dos chineses brilhar. “O Brasil é mais aberto do que outras nações em desenvolvimento em campos como telecomunicações e energia. Mais de 90% das grandes empresas chinesas têm interesse em expandir seus negócios no país”, diz Yue Yunxia, pesquisadora do Centro de Estudos Latino-Americanos da Academia Chinesa de Ciências Sociais. Algumas grandes do setor já fincaram pé em território nacional. A Great Wall Motors (GWM), uma das principais montadoras de veículos chinesas, adquiriu uma antiga fábrica da Mercedes-Benz na cidade paulista de Iracemápolis para produzir veículos híbridos (motor elétrico e a combustão) de última geração. A empresa tem planos de investir 4 bilhões de reais até 2025 para montar até 100 000 unidades por ano no Brasil, já a partir do primeiro semestre. Seguindo o padrão chinês, a diferença está no preço: o carro da GWM deve custar até 50% mais barato do que os concorrentes tradicionais. “Temos a ambição de nos tornar uma marca global. Dominamos uma tecnologia fantástica e queremos entrar na América Latina por meio do seu maior país”, explica Parker Shi, vice-presidente da empresa. Outra iniciativa apresentada pela mesma GWM ao governo é a produção de hidrogênio verde no Nordeste a partir de fontes renováveis, como energia eólica e solar.
Priorizar a pesquisa e a inovação foi um fator-chave no extraordinário desenvolvimento da China neste século, permitindo que atingisse a chamada fronteira tecnológica, requisito essencial para ingressar no seleto clube de países desenvolvidos, quase duas décadas mais cedo do que o previsto. O tamanho do salto fica evidente na trajetória da Huawei no Brasil. Em 2000, a empresa de equipamentos de telecomunicações escolheu São Paulo para implantar parte da sua produção porque, entre outros fatores, os dois países estavam no mesmo patamar tecnológico. Vinte e três anos depois, a Huawei é um gigante do setor, lidera o segmento 5G e prevê lançar a sexta geração de rede móvel em poucos anos. “Somos a segunda empresa que mais investe em pesquisa no mundo. No ano passado, 20% da receita bruta anual foi para a inovação”, diz Atilio Rulli, vice-presidente para América Latina e Caribe.
No ritmo que avançava antes da pandemia e que agora começa a retomar, calcula-se que até 2030 a China possa ultrapassar os Estados Unidos como nação mais rica do globo, ancorando seu crescimento em investimentos públicos e privados — atualmente, eles chegam a 42% do PIB, o maior patamar entre as nações do G20. Não sem riscos, porém. Segundo especialistas, os ganhos de produtividade decorrentes da construção de uma infraestrutura capaz de impressionar o Ocidente já não são tão significativos e a relação entre a dívida e o PIB atingiu o perigoso recorde de 273% no fim do ano passado. Há também um cenário nebuloso no mercado imobiliário, o que pode atrapalhar a indústria da construção civil e, consequentemente, as nossas exportações de minério de ferro.
A saída, que já vinha sendo tentada, é estimular o consumo das famílias. Elas, de fato, colaboram. Comprar é atividade em alta neste pós-pandemia, com enorme movimento nas lojas, assim como viajar — em Xangai, por exemplo, tropeça-se em turistas em toda parte. Mas o trauma da Covid-19 e a falta de um colchão social eficiente impedem a população de gastar tanto quanto o governo gostaria. “Nos próximos anos, Pequim terá de encarar seriamente a dívida pública. No melhor cenário, o crescimento anual encolherá para 2% a 3%, um ajuste bem difícil politicamente”, antecipa Michael Pettis, professor de economia da Universidade de Pequim. Convém, no entanto, relativizar as indicações de esgotamento do modelo econômico chinês. Como já foi amplamente demonstrado, quando o gigante oriental aponta a lanterna para algum objetivo, ele sempre surpreende.
(Com reportagem de Nathalie Hanna)
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834