Vigilância permanente: o coronavírus reaparece em Pequim
Depois de dois meses sem sinal da doença, cidade volta a registrar contágio, age rápido e mostra ao mundo que não é hora de dar a guerra por vencida
Evento cercado de pompa que todo ano reúne a elite do Partido Comunista da China em Pequim, o Congresso Nacional do Povo teve em 2020 um único tema: a batalha contra o novo coronavírus. Era fim de maio, e os chineses celebravam o fato de terem debelado a Covid-19 em tempo recorde, enquanto as curvas da doença ainda disparavam no Ocidente. Como prova inequívoca do triunfo, o presidente Xi Jinping enalteceu justamente o exemplo de Pequim, metrópole de 21 milhões de habitantes que, depois de registrar 499 casos e nove mortes, retomava sua rotina bem adaptada às regras pós-pandemia. “A segurança e a estabilidade da capital comprovam as amplas perspectivas que se apresentam à China”, proferiu Jinping, em tom épico. Na quinta-feira 11, o vírus voltou a assombrar Pequim, que havia 56 dias não contava um único infectado e, de repente, se viu às voltas com mais de 160.
Há justificado temor de que uma segunda onda de contaminações esteja à espreita de países onde a epidemia se encontra em patamares controlados. Especialistas dizem que é impossível traçar qualquer cenário ante tantos fatores imponderáveis, entre eles a evolução de um vírus sobre o qual se conhece ainda muito pouco. Tudo sinaliza que o atual repique de casos na China, porém, se enquadre no que os cientistas chamam de “pequena explosão pontual”, decorrência natural do relaxamento da quarentena severa. “Não se pode dizer que estamos diante de uma segunda onda da pandemia, mas é certamente uma prova do quão complexa será a vida até que se ache uma vacina”, alerta Yanzhong Huang, do Council on Foreign Relations, de Nova York.
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Clique e AssineNão há dúvida de que se sairão melhor aqueles países que não vacilarem diante de novos focos de contágio. Com o brio ferido, o governo chinês pôs de pé uma engrenagem rigorosa para frear a proliferação do vírus, que, já se sabe, desta vez se iniciou no mercado Xinfadi, o maior centro distribuidor de alimentos da Ásia, com tamanho equivalente a 160 campos de futebol. O primeiro diagnosticado foi um homem de 52 anos que não tinha viajado e começou a apresentar fadiga e febre alta depois de fazer compras no mercado. Nos quinze dias entre sua visita ao local e a ida ao médico, ao menos 200 000 pessoas bateram ponto no Xinfadi, o que desencadeou uma força-tarefa encabeçada pelo Centro de Controle de Doenças Chinês (CDC): 100 000 funcionários rastrearam o público que esteve no mercadão e quase todos já haviam sido testados até quinta-feira 18. Ainda se investiga como o coronavírus retornou à cena — uma hipótese é ter adentrado o país sobre a superfície de um carregamento de salmão importado da Noruega.
A reação chinesa incluiu a volta a uma rigorosa quarentena nos bairros em torno do mercado, fechamento de escolas e o quase isolamento de Pequim, com suspensão de 70% dos voos. O recuo na liberdade não é novidade na China pós-pandemia. Há poucos dias, deu-se um repentino surto em Wuhan, onde o novo coronavírus primeiramente apareceu para o mundo, e as autoridades determinaram que todos os 11 milhões de moradores da província deveriam ser testados. “A China não quer sob nenhuma hipótese ficar com a imagem negativa, arranhada pela inação, como no início da pandemia”, avalia Ben Cowling, epidemiologista da Universidade de Hong Kong. Outros países que estão indo bem na briga contra o vírus, como Japão e Coreia do Sul, também viram um espocar recente de novos casos e souberam trilhar o caminho do bom senso, retrocedendo no processo de abertura de casas noturnas, parques e museus e isolando os doentes.
Os estudiosos confirmam que as idas e vindas serão cada vez mais frequentes e que os governos terão de captar o momento certo para impor restrições, de modo a sufocar os surtos. Quanto mais testes para mapear os bolsões de contágio, mais efetivas serão as medidas para contê-lo. A experiência vem ensinando que a pressa em relaxar a quarentena costuma vir seguida de uma escalada nos casos e acaba por resultar em regresso — situação que vive hoje toda uma região ao sul da Índia que precisou decretar, na segunda-feira 15, outro lockdown. Mesmo a Nova Zelândia, que havia festejado o banimento da Covid-19, registrou dois contaminados vindos da Inglaterra. Antes de testá-los, o governo lhes permitiu uma brecha na quarentena para visitar um parente adoecido, o que expôs dezenas de pessoas ao vírus. “Não poderia ter acontecido e não vai se repetir”, prometeu a primeira-ministra Jacinda Ardern, dando satisfação à sua pequena nação. A guerra será vencida. Mas ainda não terminou.
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692