Aos 54 anos, a ex-jogadora de vôlei Ana Moser assumiu a chefia do Ministério do Esporte com a missão de ampliar o número de pessoas com acesso a práticas esportivas no país, revertendo estatísticas que apontam que mais de 60% da população acima de 15 anos não é adepta de qualquer modalidade ou atividade física. Em sua estreia em um cargo público de caráter nacional, ao qual ascendeu após atuar como militante em prol de leis que impediram, entre outras coisas, a reeleição eterna de dirigentes, a ministra planeja colocar de pé um programa esportivo nacional que tenha a capilaridade similar ao Sistema Único de Saúde (SUS). A ideia é utilizar a experiência em negociações com a classe política, forjada ao longo de vinte anos à frente de uma organização não governamental, para fazer avançar discussões caras ao governo do PT, de quem é simpatizante e eleitora fiel. Casada há 23 anos com uma jornalista e mãe de dois filhos, Moser falou a VEJA sobre seus projetos, de homofobia e machismo no esporte, do debate envolvendo pessoas trans em desportos coletivos e dos cada vez mais frequentes e polêmicos posicionamentos políticos de atletas de alto rendimento. A seguir os principais trechos da entrevista.
O que significa ser a primeira mulher ex-atleta a assumir o comando da autoridade esportiva do país? É uma oportunidade de colocar uma visão feminina, muitas vezes mais conciliadora e construtiva, na causa. Espero ter esse olhar de sabedoria, de conciliação e de cuidado para estruturar o esporte. Hoje temos poucas mulheres em cargos de direção esportiva. A história do esporte é tradicionalmente masculina, com um jeito de homem de comandar, mas as coisas vão evoluindo, se transformando. A gestão ainda é muito machista.
Quais são os reflexos disso? Ainda é comum no meio esportivo falar que mulher é insegura, sensível e não aguenta pressão. Isso não é verdade. Quando as mulheres ganham oportunidade, mostram quanto esse discurso é ultrapassado. Temos de nos impor. Temos pouco espaço nos veículos de comunicação para mostrar a participação feminina no esporte? Isso é o reflexo dessa cultura da qual estou falando.
Qual será a prioridade do Ministério do Esporte? Na área de educação, por exemplo, há controle de quantos alunos e professores estão nas escolas, quantas instituições de ensino existem e qual é a taxa de evasão escolar. A mesma coisa acontece no SUS. Precisamos ter algo semelhante no esporte, uma avaliação completa da prática de atividade física no país, quais são as políticas existentes, como estimular o esporte para o cidadão comum. O pulo do gato é integrar isso tudo. Fazer um SUS do esporte.
Na prática, como funcionaria essa ideia? O primeiro passo é formalizá-la. Hoje, o que é visível e financiado no país é o sistema competitivo de alto rendimento, que só atende 5% da população. Estamos indo a campo para buscar formas de financiamento. Uma das hipóteses é tributar as apostas on-line para bancar um fundo que também receberá recursos da lei de incentivo ao esporte. Pretendemos criar uma imensa rede de acompanhamento da prática esportiva em todos os municípios.
“Não havia política no governo passado. Os recursos liberados eram atrelados à região em que o parlamentar atuava. Éramos um mero departamento carimbador de processos”
No governo passado, o Esporte perdeu o status de ministério. Que consequências essa decisão trouxe? Foi tudo destruído. Alguns programas existiam apenas no nome e muitas ações ficavam na dependência de emendas parlamentares. Não havia nenhuma política de Estado no governo passado. Os recursos eram liberados atrelados à região em que o parlamentar autor da emenda atua e éramos um mero departamento carimbador de processos. Agora vamos organizar uma planilha com prioridades, porque emendas para coberturas de quadras, contratação de professores em ONGs e ampliação de atendimentos são executadas aqui.
Qual deve ser o foco do governo nesta área? Não se deve fazer uma política pública para descobrir talentos, mas, sim, priorizar o desenvolvimento humano. O talento é apenas uma das consequências. Hoje, o esporte de alto rendimento é o retrato do esporte do país. Ser esportista de alto rendimento no Brasil é um acaso, é uma sorte. É nascer no lugar certo e na hora certa. Infelizmente no Brasil só olhamos para cima e não temos a base. Isso não é coerente, não é lógico e não é funcional. O esporte tem um histórico de ser dos deuses, dos nobres, da elite, mas na nossa Constituição é um direito de todos. Na prática isso ainda não aconteceu.
A senhora vem de um esporte tido como de elite. Apesar de o vôlei desde a década de 90 ter investimento contínuo, ele ainda é, sim, um esporte da elite. O esporte pode ajudar a mudar a realidade das pessoas, a desenvolver lugares com políticas públicas. Quando eu jogava no Rio, o máximo que se chegava era em Madureira, e isso evidencia a desigualdade. Não se trata de fazer uma peneira na Zona Oeste do Rio e ir jogar em Copacabana. Precisamos de um plano de ocupação dos territórios com esporte em lugares mais isolados.
A atividade esportiva faz parte do currículo desde a pré-escola. O que há de errado? Crianças e adolescentes precisam ter uma carga esportiva muito maior do que as oitenta horas que a atividade física curricular oferece. Esse é o máximo que nossas crianças e jovens têm, e boa parte não tem acesso nem a isso. Temos de trabalhar com estratégias pedagógicas. Uma delas é a do conceito de incluir a todos, uma construção coletiva, inclusiva. Um exemplo é o professor de escola que chega à sala e coloca os dois melhores jogadores para dividir os times e sobram os ditos “perebas”. Isso traumatiza e tira qualquer possibilidade de desenvolvimento de uma pessoa. Não é inclusão. Não é respeitar a diversidade. Não é um pacto pelo esporte.
À exceção do futebol e do vôlei, não temos, como regra, grandes destaques em outras modalidades esportivas. Por quê? Tradicionalmente essas modalidades se desenvolveram mais por terem mais apelo em captar patrocínios. Infelizmente, na cultura brasileira, o vôlei, por exemplo, é mais fácil de captar recursos que o atletismo, que é menos televisivo. Podemos mudar esse cenário ao promover investimentos estruturados, como ocorreu durante a Olimpíada do Rio de Janeiro em relação ao esporte como um todo. A partir dos Jogos, tivemos crescimento em diversas modalidades, contratação de técnicos, participação em competições internacionais com metas. A realidade está mudando, mas é um processo.
Muito do legado olímpico está em obras inacabadas, elefantes brancos e denúncias de corrupção, compra de votos para a escolha do Rio como sede dos Jogos e um número de medalhas proporcionalmente pequeno. O que a Olimpíada revelou sobre o Brasil? Essa é uma pergunta muito complexa. Com a Olimpíada do Brasil tivemos, de fato, uma década esportiva com maior visibilidade para o esporte. Se foi 100% bem aproveitada? Bom… Com certeza, poderia ter sido melhor.
Recentemente a senhora se envolveu em uma polêmica ao dizer que o chamado e-sport não é esporte. E-sport não é esporte no sistema de aprovação do governo federal, formado pelo ministério e pelo Conselho Nacional do Esporte. Dentro desse processo, até que o tema chegue ao conselho existe um caminho de mobilização do setor. Foi assim com a capoeira e com outros tantos. O ponto central do e-sport terá de ser debatido com os outros setores, sim.
Então e-sports não é esporte. Tenho uma visão biopsicossocial do que é esporte. Para mim, esporte é predominantemente motor, movimento, motricidade humana.
Por que o artista pode se manifestar politicamente e o atleta é punido quando externa sua opinião? O atleta tem o direito de se manifestar e participar. São regulações que podem ser feitas internamente com conversas. Existem contratos, como na seleção de vôlei ou no Circuito de Vôlei de Praia, com cláusulas específicas. Isso apareceu na manifestação da Carol Solberg, denunciada ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) por causa de uma manifestação contra Bolsonaro. Errada está ela e errado está o contrato, mas no fim das contas valeu o que estava previsto no contrato. O esporte é conservador, é masculino. O atleta nunca teve voz, mas deve ter direito de se manifestar.
“Ainda é comum falar que mulher é insegura e não aguenta pressão. Quando as mulheres ganham oportunidade, mostram quanto esse discurso é ultrapassado”
O Superior Tribunal de Justiça Desportiva arquivou o processo contra o jogador Wallace de Souza, que em uma rede social fez uma enquete em que perguntava quem daria um tiro na cara do presidente Lula. Isso vale para ele também? Acho que ele deve ser tratado como qualquer cidadão, mas, se a Justiça entender que o que ele fez é crime, ele tem de ser responsabilizado. É a fala de uma figura pública.
A homofobia é comum no esporte? Infelizmente a homofobia existe também no esporte, embora não haja mais espaço para esse tipo de preconceito. Nós queremos um esporte que integre todos e não podemos tolerar de forma alguma qualquer tipo de discriminação.
Atletas trans em esportes de alto rendimento devem disputar competições no gênero com o qual se identificam, ainda que fatores como força e velocidade possam ser interpretados como desproporcionais? Eu não nego que existe uma discussão ideológica em torno do tema, mas é preciso ter todo o cuidado para respeitar os direitos estabelecidos e acompanhar os avanços que a ciência traz. A questão trans é muito importante e cada esporte está tratando dela de uma maneira. Nos reunimos com técnicos e estamos acompanhando para que o assunto seja abordado com o respeito, o cuidado e o rigor científico que merece. É preciso que se encontre um equilíbrio tanto esportiva como socialmente.
A senhora diz que o esporte é conservador, masculino. Recentemente fez um agradecimento público à sua companheira. Que tipo de preconceito enfrentou por ser casada com uma mulher? Eu senti preconceito no esporte, mas quem não enfrentou? É a vida de quem é diferente, como se isso fosse fora do normal, uma vida que supostamente foge ao padrão. O esporte é preconceituoso, mas hoje essas questões não cabem mais. Neste governo foi a primeira vez que fui tratada oficialmente como casada com a minha esposa, com quem tenho uma vida compartilhada há 23 anos, e mãe de dois filhos. Queremos respeito.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834