Ex-presidente nacional da OAB, o advogado Felipe Santa Cruz confirma que está prestes a se lançar candidato ao governo do Rio de Janeiro. Para isso, ainda tem de desatar dois nós: ser um nome pouco conhecido fora do meio jurídico e alinhavar alianças políticas de peso. Com esse objetivo, assinará em março a filiação ao PSD, do prefeito Eduardo Paes, que foi quem lançou seu nome como candidato. Mas Santa Cruz, 49 anos, está confiante de que vai superar os obstáculos e diz que a resistência mais forte vem de seus quatro filhos. “Comandar o Palácio Guanabara tem sido um voucher para o presídio de Bangu”, brinca. Uma fonte de preocupação é a ampliação dos ataques digitais — já foi alvo deles durante embates com Jair Bolsonaro e seus seguidores. O presidente abriu uma ferida ao insinuar que seu pai, um estudante de direito que militava contra a ditadura, não havia sido torturado e morto pelo Estado. Nesta entrevista, Santa Cruz fala sobre conversas com Lula, analisa a Lava-Jato e dispara contra Sergio Moro.
À frente da OAB, o senhor entrou em permanente rota de colisão com o presidente Bolsonaro. Ficaram sequelas? Tomei posse em janeiro de 2019 e já havia uma campanha contra mim nas redes, capitaneada por uma milícia digital muito bem articulada. Como tinha pedido antes a cassação de Bolsonaro, pela apologia ao Brilhante Ustra, um torturador, e ainda por cima sou filho de um político que lutou contra a ditadura, os bolsonaristas não perdoaram e partiram com tudo para cima de mim, fazendo circular fotos falsas, xingando. E aí veio o presidente e disparou uma frase que me feriu profundamente. Disse: “Um dia eu te conto como seu pai morreu, você nem vai querer saber”. E insinuou que havia sido eliminado por guerrilheiros, e não pelo Estado. Foi como um segundo assassinato dele. A violência, estranhamente, me libertou, porque tive naquele momento a verdadeira compreensão sobre Bolsonaro.
Acha que o presidente estava por trás da campanha nas redes contra o senhor? Não tenho dúvida de que o tiroteio saía do chamado gabinete do ódio, de dentro do Palácio do Planalto, onde se instalou uma máquina poderosa e hiperfinanciada. Aliás, o Supremo ainda está devendo esta resposta: quem, afinal, sustenta tamanha engrenagem?
Qual a importância atual do Judiciário para frear tais excessos? Sabe que ninguém critica tanto o Judiciário quanto os advogados, que conhecem bem seus vícios, sua falta de celeridade, o exagero no formalismo. Mas nestes últimos anos é inegável que ele representou um pilar maior do estado democrático de direito. Só para dar um exemplo, foi o STF que, depois de analisar uma ação da OAB, acabou por descentralizar as decisões sobre a pandemia, dando autonomia a estados e municípios e poupando centenas de milhares de vidas. E assim, ao longo desses anos, as batalhas iam sendo travadas. Sei que, desde o início, o que Bolsonaro queria mesmo era extinguir a Ordem.
É impressão ou informação? Tive três conversas com o Gustavo Bebianno (apoiador, morto em 2020, que se tornou desafeto de Bolsonaro), que me confidenciou, ainda antes da posse, que estava em marcha uma iniciativa que poderia acabar com a OAB, retirando a obrigatoriedade do exame da Ordem. Ele, com quem sempre me dei bem, disse: “Temos de evitar isso”. Aí o Bebianno cai e a artilharia começa. Bolsonaro vê a OAB e outros órgãos que compõem o caldo institucional brasileiro como casas do comunismo, uma visão tacanha que não combina com o jogo democrático.
“Bebianno, então homem de confiança do presidente, me confidenciou que estava em marcha uma iniciativa que poderia acabar com a OAB, casa do comunismo para Bolsonaro”
Qual sua avaliação sobre a Operação Lava-Jato? É irrefutável que o país pela primeira vez deu relevância à luta contra a corrupção, mas há problemas sérios nos métodos com que a operação transcorreu. Se não aprimorarmos os mecanismos para dar ampla defesa aos acusados, sem delações frágeis, estaremos fragilizando o combate à impunidade. Sergio Moro deve ser o campeão mundial de sentenças anuladas, pois desvirtuou as regras e viciou os próprios processos. A sensação pós-Lava-Jato é de que a liberdade para a prática da corrupção voltou. Alguém duvida que esse orçamento secreto vai virar escândalo?
E o juiz Marcelo Bretas, braço da Lava-Jato no Rio, cometeu os mesmos erros? Sem dúvida. Estive com Nythalmar Ferreira, advogado que teria pré-combinado as delações de seus clientes com Bretas, e ele me narrou fatos gravíssimos do ponto de vista processual. Defino Bretas como um sub-Moro, um Moro brega, deslumbrado.
O senhor vai mesmo sair candidato ao governo do Rio? Sim, tomei essa decisão, em parceria com o prefeito Eduardo Paes.
Seu grupo e o PDT encaminharam a formação de uma aliança no estado. Isso pode prejudicá-lo, visto que o pedetista Rodrigo Neves também é pré-candidato? De maneira alguma. Continuo candidato. O que há é um passo importantíssimo com a união de duas grandes forças da política fluminense. Na hora certa, teremos a maturidade para montar uma chapa vencedora com a formação apropriada para disputar o pleito.
Paes disse que Lula não teria relevância para a eleição do Rio, mas voltou a se encontrar com ele na última terça. Seu grupo quer ou não o apoio do ex-presidente? Política é diálogo. Este momento é rico para isso e assim deve ser. Essa articulação está além das nossas fronteiras, depende de fatores que não controlamos regionalmente, mas sempre disse que nosso palanque será o mais forte contra o bolsonarismo no Rio.
Sua mãe e seu padrasto ajudaram a fundar o PT e o senhor mesmo tentou ser vereador em 2004 pelo partido. Subirá ao palanque com Lula? Vou estar com o candidato do meu futuro partido, o PSD. Mas não teria nenhum problema em caminhar com Lula, assim como me associaria a qualquer representante do campo democrático. O importante é haver uma frente consistente anti-Bolsonaro.
Como foram seus últimos encontros com Lula? Falamos sobre o Judiciário, sobre o processo dele, que aliás lhe causou e causa muito sofrimento. Lula guarda fortes mágoas em relação ao desenrolar da Lava-Jato, ao modo como ele pousou em Curitiba, com a PF na escolta para não ser linchado. Mas, em um desses bate-papos, Lula ponderou: “Pera lá, um homem de 76 anos e apaixonado não tem o direito de cultivar rancor”.
O que faz alguém querer comandar um estado afundado em dívidas, atolado nas mazelas da segurança pública e com seis governadores afastados ou presos? É exatamente o que os meus filhos me perguntam. Eles sabem que ser governador do Rio é quase que um voucher para o presídio de Bangu. Mas isso é para quem escolhe trilhas que não as minhas. Acho o desafio irrecusável, não tenho medo. E estamos falando do Rio, que eu adoro. Quando é para ir para Brasília, entro no avião chorando.
Já esboçou algum programa de governo? Ele ainda será construído. O que vejo é que o Rio se transformou naquela família rica decadente, que já foi milionária e passou anos vivendo de aparência. Aí quando vende seu último quadro, no caso a Cedae, e vê o preço do barril do petróleo subindo, a família endividada volta a comer caviar até que, um dia, precisa ir morar na casa de uma tia. São muitos os problemas. Fui a uma reunião com empresários em São Paulo, junto com o Eduardo (Paes), e ouvi: “A segurança do Rio é um território perdido”.
E é? Claro que não. Mas não é com programas como o Cidade Integrada, recém-lançado, sem nenhum planejamento, que o Rio vai deixar esse buraco. A gente sabe que é início de ano eleitoral e que o governador Cláudio Castro, hoje no PL, o partido do presidente, está fazendo a campanha dele. Agora, é um equívoco gastar dinheiro assim. Perguntei recentemente ao vice-presidente Mourão se seria mesmo candidato ao Palácio Guanabara. Resposta: “Meu filho, estou lendo os relatórios da segurança aqui e acho que não tenho mais idade para enfrentar o que está acontecendo”. Temos um claro atraso nessa área, regredimos.
É verdade que o PSDB o sondou para sair candidato pelo partido no Rio? Sim. Recebi um recado do Doria via Bruno Araújo, o presidente do partido, de que eles gostariam de me ter como candidato. Meu diálogo com o governador de São Paulo é o melhor possível, um cara gentil, cuidadoso, embora muita gente não o veja desse jeito. Qualquer passo nessa direção, porém, só poderia ser dado em uma costura que envolvesse o meu grupo político. Estamos conversando também com setores do PDT e do próprio PT.
“O Rio se transformou em uma família rica decadente. Vende seu último quadro, a Cedae, o barril do petróleo sobe e aí fica comendo caviar. Um dia, precisa ir morar na casa da tia.”
E como o senhor avalia a candidatura de Moro à Presidência? Trata-se de uma sublegenda do bolsonarismo. Na ditadura não tinha divisões, tipo Arena do A e Arena do B? Para mim, é mais ou menos a mesma coisa: o autoritarismo da toga versus o autoritarismo militarizado. Quando Moro aceitou o convite para ser ministro de Bolsonaro, ele preenchia os pré-requisitos, havia passado por um concurso difícil de juiz federal e tinha um trabalho a apresentar. Mas cometeu um grande erro ao levar o patrimônio simbólico do combate à corrupção para dentro de um governo, que é conjuntural por definição. Acho que foi movido por um misto de vaidade e despreparo. Ele fez uma leitura equivocada de seu papel ao se ver como um super-herói.
A caneta do presidente exerce uma grande influência sobre o Judiciário? Às vezes, ela influencia, sim. É poderosa. Até porque há figuras no Judiciário que alimentam expectativas de promoção. Também não há dúvida de que a Polícia Federal está aparelhada. Nesse ponto, o doutor Sergio Moro está falando a verdade. Só me pergunto por que ficou calado no governo. Há um trabalho silencioso de demolição das instituições.
A mesma caneta beneficia os filhos do presidente? Não conheço os processos contra eles no detalhe, portanto não posso me pronunciar juridicamente. Mas tudo indica que existia um esquema de enriquecimento familiar em seus gabinetes. Basta olhar para a evolução do patrimônio do clã. Eles têm dificuldade de separar o público do privado, assim como seus assessores, que circulam sem cerimônia nas esferas do poder representando os interesses da família. O presidente pode ser acusado de qualquer coisa, menos de não ser um bom pai.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777