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José Mujica: “A esquerda brasileira errou, permaneceu estagnada no tempo”

O ex-presidente do Uruguai diz que esquerda ficou 'presa em um mundo que mudou' e afirma que atos golpistas foram manifestações de fanáticos

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 11h02 - Publicado em 20 jan 2023, 06h00
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  • José “Pepe” Mujica é um ícone da esquerda latino-americana. Durante a ditadura no Uruguai, ficou quase quinze anos preso, sete deles isolado numa solitária e longe dos livros que tanto ama. Ex-guerrilheiro, escreveu uma história de redenção após a redemocratização de seu país, que governou entre 2010 e 2015. Como presidente, avançou na legalização do aborto e na descriminalização da maconha, medidas defendidas por petistas, mas que ainda não saíram do papel no Brasil. Também lidou com tentativas de corrupção, as quais, segundo ele, foram devidamente rechaçadas. De fala mansa e pausada, Pepe se orgulha de ostentar o título de o dirigente mais pobre do mundo, o que lhe daria autoridade para cobrar dos mais ricos que façam um pouco pelos mais pobres. Conhecido pelo estilo franciscano, o ex-presidente uruguaio recebeu VEJA em seu sítio na zona rural de Montevidéu. Em duas horas de conversa, comentou os atentados às sedes dos três poderes no Brasil, definiu como o maior desafio de Lula a pacificação e reconstrução da democracia brasileira, reconheceu erros da esquerda na seara da corrupção e recomendou ao petista, de quem é amigo, que não transija com desvios e roubalheira. A seguir os principais trechos da entrevista.

    O senhor acompanhou os atentados às sedes dos três poderes em Brasília? Vi pelos veículos de comunicação. Havia gente com Bíblia na manifestação. Misturam religião com política. São fanáticos. Uma gente fanatizada, muito primitiva, que acredita em qualquer coisa. É bom ressaltar que não foi o Lula quem colocou a esquerda contra a direita nas eleições. Bolsonaro que instigou essa divisão. O bolsonarismo tem uma tendência autoritária terrível. Bolsonaro criou um confronto nacional assustador em um país que sempre foi o reino da alegria. O que tivemos naquele domingo não é o Brasil que conheço, mas um Brasil de fanáticos, que não prevalecerá. As instituições estão muito fortalecidas no Brasil.

    O governo acredita que foi uma tentativa de golpe. É evidente que houve colaboração de pessoas de esferas maiores, porque uma mobilização dessa natureza… Os organismos de inteligência serviram para quê? Somente para receber o salário? Se fossem quatro, cinco ou dez pessoas, o movimento poderia ter passado despercebido, mas foi uma multidão, que estava reunida em um acampamento perto do quartel-general do Exército. Tenho certeza de que teve gente da alta esfera que colaborou com isso. Foi algo armado.

    A América Latina teve sua escalada de golpes militares. Haveria espaço para algo desse tipo no Brasil? Aquilo, como disse, foi algo armado. Deve ter gente da alta esfera com tendência bolsonarista envolvida. Me parece a continuidade do grupo organizado que ficava na porta dos quartéis para pedir ao Exército que desse um golpe de Estado. Foi uma mobilização para desatar um caos enorme com o objetivo de acionar as Forças Armadas. Foi um incentivo às Forças Armadas para que se mobilizassem.

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    “A esquerda brasileira errou, permaneceu estagnada no tempo e presa em um mundo que mudou. Esquerda é empatia, é solidariedade e é preocupação com a desigualdade”

    Mas o senhor vê algum risco de quar­tela­das nos dias de hoje? A resposta está no que farão os militares. Está escrito que os militares devem respeitar a Constituição e apoiar o governo constituído. Aí está o desafio. Isso não se resolve com discurso nem com declarações. Há que se trabalhar para que os militares tenham a responsabilidade histórica de cumprir a Constituição. O governo Bolsonaro buscou um confronto nacional para definir um país. O fanatismo é sempre ruim. É um primo-­irmão degenerado do amor. O amor é cego, mas criador. O fanatismo é cego e não permite ver dados elementares da realidade.

    Muitos analistas avaliam que a eleição de Bolsonaro foi resultante da rejeição à esquerda e ao PT. A esquerda brasileira errou, permaneceu estagnada no tempo e presa na literatura de uma época em um mundo que mudou. Esquerda é empatia, é solidariedade e é preocupação com a desigualdade. É sonhar com um mundo um pouco mais justo e com uma humanidade mais nobre. É o que a esquerda tem de mais bonito.

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    A propósito, o PT é um partido de esquerda? É um partido de esquerda mais ou menos, com contradições. Vale ressaltar que nem os partidos nem as instituições falham, quem falha são os humanos. Às vezes nos desviamos porque somos individualistas. As pessoas se apaixonam pelos cargos. Tudo isso passa. A coisa não é simples.

    Escândalos de corrupção entram na conta dos erros da esquerda brasileira? Como estamos envolvidos em uma cultura de vencer na vida e de ser rico, muita gente se apropria dessas tolices. As grandes empresas utilizam o suborno como método para se apropriar e naturalmente dentro da burocracia política encontram um caminho para isso. O Brasil teve esse problema em grande escala porque é gigantesco. A esquerda brasileira não deixa de ser humana e certamente teve gente que fez besteira e “pisou na bola”, mas eu não posso me prender somente em relação à esquerda porque isso acontece com a direita e com todos. O empresário te rodeia e tenta te corromper.

    Tentaram corromper o senhor no Uruguai? Sim, mas não tiveram êxito. Me disseram que iam casar a filha em Veneza e me convidaram para ir ao casamento com a minha esposa. Não fui. É apenas um exemplo.

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    Lula chegou a ser condenado e preso. Vários integrantes do PT tiveram o mesmo destino. Tudo isso foi apenas “falha”? O Brasil tem outro problema, que é da esquerda, da direita e do centro. As dimensões que tem e a quantidade de particularidades estaduais. Quando querem aprovar uma lei, os partidos são fundamentais, mas o que pedem? Tem de fazer uma estrada aqui, uma ponte ali. Mais do que uma discussão política ou ideológica, é uma bolsa de valores. Isso abre a porta à condição humana. O Brasil tem uma armadilha constitucional. Isso é terrível. Não sei como fazem.

    Qual seu conselho para Lula para que eventos do passado não se repitam? Que seja implacável com a corrupção e capaz de tirar um irmão. Não há remédio, não se pode fazer transação com isso. Ele tem uma responsabilidade gigantesca. O temor que tenho do Brasil é que ele é muito grande. É muito majestoso. Veja o Lula que saiu de um bairro operário, um bairro metalúrgico, um bairro de gente comum. Tudo é possível no Brasil. Na história do Brasil, Lula é um fenômeno, pela origem, pelas peripécias, pelo que passou. E agora enfrenta o desafio mais difícil de sua vida: pacificar o Brasil e defender a democracia.

    Ele acertou ao apostar numa frente ampla na campanha? Era a sobrevivência da democracia institucional contra as tendências autoritaristas. Há uma aliança entre uma quantidade de setores que eram adversários. Isso significa uma troca, porque essa gente viu que precisava salvar a democracia. Se deram conta de que só Lula poderia liderar esse movimento, e o Lula também se deu conta disso. Lula não é um esquerdista radical. Ele vai apenas fazer com que a economia funcione melhor para ajudar quem tem fome. São 33 milhões de famintos. Isso não é aceitável.

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    A viagem de três presidentes uruguaios para a posse de Lula (o atual, Lacalle Pou, e os antecessores Mujica e Sanguinetti), de partidos diferentes, passa qual mensagem? Primeiro de tolerância, porque a democracia não é viável se nos deixarmos levar pelas diferenças que temos e nem sequer nos falarmos. Na democracia temos de dialogar, falar e trocar experiências. Agir como inimigos que nem se cumprimentam, como cachorro e gato, não funciona. Como um lago de azeite que não serve para nada. Isso é terrível.

    Qual a opinião do senhor sobre a legalização do aborto? Ninguém gosta do aborto, muito menos a mulher que o faz. Mas a vida tem suas ciladas e imposições. E o fato é que desde que o mundo é mundo o aborto existe. Eu fui criado num bairro proletário no qual havia uma parteira que fazia abortos a uma quadra da delegacia e a duas quadras da igreja. E as mulheres faziam fila, às vezes na calçada, para fazer o procedimento. Todo mundo sabia. As mulheres pobres são as que enfrentam as piores condições.

    “Ninguém gosta do aborto. Mas a vida tem suas ciladas e imposições. Desde que o mundo é mundo o aborto existe. As mulheres pobres são as que enfrentam as piores condições”

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    Por que o senhor defendeu a legalização da maconha? Porque estavam prendendo jovens que fumavam um cigarro de maconha. A maneira de combater a droga é deixá-la sem mercado clandestino. Passamos quase um século fracassando com a política repressiva das drogas, que só serve para gastar uma fortuna em equipamentos policiais, quando tínhamos de gastar esse dinheiro com atendimento médico e um bom serviço de recuperação. Ter pessoas identificadas para poder atendê-las a tempo, não quando estão destroçadas. Einstein dizia, se você quer mudar, não pode continuar fazendo o mesmo.

    Já fumou maconha? Não. Nunca. Eu fumo cigarro de tabaco, que é um veneno pior.

    A legalização da maconha trouxe algum problema para o Uruguai? Não, pelo contrário. Agora estão aparecendo empresas que querem desenvolver a parte medicinal, que é muito importante. Existe um mercado muito grande. E o Uruguai está ganhando dinheiro com esse mercado. O Brasil, se quisesse, teria condições de implementar uma política similar. Teria de começar em um estado, em um lugar para aprender e depois estendê-lo, de maneira regionalizada. O Brasil pode fazer qualquer coisa.

    O senhor acredita em Deus? Quem, eu? Se almoça na mesa do patrão, na minha casa não passou. Mas eu amo a natureza e a vida. Talvez eu seja um pouco panteísta. Se existe encanto, está aí. Sou um adorador da natureza. Estive muitos anos preso. Desses, fiquei sete anos sem livros, sem poder escrever, ler, fazer nada. E, para não ficar louco, tive de aprender a falar com o meu interior, lá dentro, o que me ensinou o conceito socrático de conhecer a si mesmo. Deve ser a coisa mais difícil que existe, mas vale a pena. Agora estamos num mundo com muita informação externa, e as pessoas não tem tempo de falar nem pensar nisso, que dirá olhar para dentro de si.

    O senhor tem 87 anos e milita desde os 14. Faria algo diferente em sua vida? Sou um líder socialista. Eu obrigaria todo o pessoal de confiança a colocar 5% a 10% para um fundo para fazer casas para os pobres. Eu colocava 80% do meu salário de presidente. Não fazia isso para me mostrar aos outros, mas para ter o direito moral de falar aos ricos que façam algo. Você tem de dar o primeiro passo.

    Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825

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