Luciano Huck: “Ameaça à democracia tem de nos unir acima de ideologias”
O apresentador conta por que trocou o flerte com a Presidência pelo lugar de Faustão e diz que políticos têm de enxergar os problemas do povo
Na virada dos 50 anos, que completou no último dia 3, Luciano Huck tinha duas decisões a festejar. A primeira, claro, foi a estreia à frente do Domingão, da Globo, deixando vinte anos nas tardes de sábado com seu Caldeirão para assumir a vitrine que pertenceu a Fausto Silva. Logo no segundo programa, dia 12, seu bom-mocismo social revelou a que veio, rendendo robustos 18 pontos de ibope. Recentemente, Huck também anunciou que não será candidato à sucessão de Jair Bolsonaro — pretensão que negava em público, diferentemente dos sinais que emitia nos bastidores. O apresentador explica por que cancelou a ideia — embora não tenha abandonado o discurso de candidato, dando indicações de que fará da TV o seu palanque permanente. Na conversa por vídeo, fala, ainda, da falta de um projeto de país e comenta o fiasco da última manifestação da oposição nas ruas.
Seu nome era tido como forte opção de terceira via na eleição presidencial, mas o senhor desistiu de ser candidato para assumir os domingos da Globo. O que aconteceu? O domingo traz uma possibilidade única de conversar com o Brasil de verdade. É o dia sagrado da família, quando todo mundo se senta junto em frente à televisão e deixa de lado o mundo digital particular que a gente tem hoje. É uma oportunidade única para quem trabalha com comunicação. Do lado televisivo, é isso. Agora, do ponto de vista político: com toda transparência, com toda franqueza, eu nunca me lancei candidato a nada, embora muita gente tenha especulado que eu seria (silêncio). Confesso que até cheguei a pensar nisso. Mas o que eu tiro desse meu projeto é que temos de unir pessoas inteligentes, que estejam a fim de construir pontes entre quem tem e quem precisa.
Se não é por meio de uma candidatura, como se daria esse projeto? Minha atuação vai continuar dentro e fora da TV. Muita gente falou que eu iria virar político, mas acho que já virei político faz tempo. Eu não pretendo sair do debate público. Pensar sobre preservação das nossas florestas é política de meio ambiente. Cobrar vacina, tomar vacina e divulgar isso publicamente é política de saúde. Combater desigualdade de gênero, racismo e homofobia é política de direitos humanos. Não consigo ver um problema e não me sentir parte dele.
De Armínio Fraga ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o senhor promoveu debates com cabeças pensantes da política e administração, e levou muitos a acreditar que seria candidato de fato. Não teve medo de frustrar tanta gente? Todos eles sabem que eu nunca me coloquei como candidato. Eu investi tempo em conversar com todos, mas não acho que tenha decepcionado ninguém nesse sentido: o jogo sempre foi muito franco. Eu continuo participando desses grupos, continuo nos fóruns e nos movimentos cívicos.
As negociações com a Globo pesaram na decisão de não ser candidato? A Globo foi muito correta, tivemos uma conversa adulta, franca e transparente. Estou bem feliz com esse novo desafio, é um renascimento para mim. Passei vinte anos fazendo o Caldeirão e agora tenho a oportunidade de começar de novo, em uma vitrine ainda mais potente. Não tem nada que conecte mais o Brasil que a TV aberta, e o país precisa recomeçar do mesmo jeito que eu estou recomeçando no meu ciclo profissional, precisa de um ciclo de resgate de esperança, de colar os caquinhos, avançar e curar as feridas que a pandemia nos trouxe. Assim como na década de 30 o cinema americano criou o American Dream para resgatar a autoestima do povo americano, a TV aberta pode ter papel importante no resgate da autoestima do Brasil neste momento duro.
“Muita gente falou que eu iria virar político, mas acho que já virei político faz tempo. Eu não pretendo sair do debate público. Não consigo ver um problema e não me sentir parte dele”
O ambiente agressivo das redes sociais também o desanimou de entrar na política? Não. Tenho bastante segurança em dizer que a temperatura das redes não é a mesma das ruas. Gosto muito mais de olhar para o que nos une do que para o que nos separa. Obviamente, não podemos ignorar a truculência do debate público, ou a violência que permeia as campanhas eleitorais brasileiras. Temos de ter o couro grosso. Mas isso não foi o motivo de eu não ter lançado uma candidatura, porque, como disse, eu não cheguei a lançar em minuto nenhum.
Sua vida profissional teve um começo mais juvenil e depois o senhor abraçou um lado social e filantrópico. Como se deu essa transformação? Sou um homem de 50 anos hoje, e comecei a fazer televisão com 20 e pouquinho. Meus programas amadureceram junto comigo. Muitas vezes, podia ficar a impressão de que era eu que estava impactando a vida das pessoas através de um carro, de uma casa, de um negócio. Mas o rio corria na direção oposta: o maior impactado fui eu. Passei vinte anos rodando este Brasil de ponta a ponta, e nenhuma universidade me ensinaria o que aprendi. Tenho ph.D. em realidade.
Hoje vivemos a explosão do streaming, concorrente direto da TV aberta. Os programas de auditório não estão fadados a virar relíquias? O bom conteúdo sempre funciona, independentemente da plataforma. Os streamings hoje estão deixando de só seguir a linha da dramaturgia e passaram a investir em formatos de entretenimento. A tendência é contrária: vão existir ainda mais programas de auditório. Além disso, no Brasil, onde a internet de qualidade não é acessível a todos, a TV aberta ainda tem muito espaço para manter sua relevância.
O domingo na TV sempre foi o espaço do escapismo. O que o levou a crer que o público iria gostar desse viés mais social do seu programa? O que me levou para o domingo foi o fato de eu ser um contador de histórias. Gosto de me conectar com a realidade, com o dia a dia, com o que tem da porta para dentro das casas. O que fizemos no último programa (de domingo 12) foi uma aposta alta da Globo, e que se provou vencedora: em um horário em que o público estava há trinta anos acostumado a ver videocassetadas, colocamos a história da Vó Tutu e da Ester (personagens da periferia de São Paulo). Fomos da Brasilândia à Colômbia, e os números de audiência foram potentes. Nossa tese é que mostrar a realidade da maioria dos brasileiros funciona.
Comenta-se que seu salário, assim como ocorria com Faustão, é hoje o maior da TV, na casa de 3,5 milhões de reais por mês. Como investe tanto dinheiro? Essa informação nunca foi pública e nunca foi divulgada, nem pela TV Globo, nem pelo Fausto, nem por mim. É uma especulação que se faz em torno dessa mística das enormes remunerações da TV, mas não acho que ficar iluminando esse tipo de remuneração em um país como o Brasil traga algum benefício. Mas, respondendo à sua pergunta: sempre fui um empreendedor, faço investimentos há mais de trinta anos para além da televisão. Dinheiro bom não é o dinheiro da remuneração pelo capital, mas aquele que investe no produtivo e gera emprego.
O salário influiu na decisão de não virar político? Não. Hoje, já cheguei àquela máxima: a vida não é sobre o que a gente junta, mas o que espalhamos. O lado financeiro não estava na minha lista de prioridades.
Em um livro recém-publicado, o senhor conta sobre o acidente de avião que sofreu com sua família. Como o episódio impactou sua vida? Nasci duas vezes: no dia 3 de setembro de 1971 e no 24 de maio de 2015. Estávamos distantes 130 quilômetros de Campo Grande quando saímos ilesos, graças a Deus, de um acidente aéreo. Eu, a Angélica e as crianças, cada um foi digerindo de uma forma. Para mim, foi muito mais uma conversa com Deus. Estive diante de dois caminhos: um talvez mais egoísta, de querer me fechar nos muros da minha casa e cuidar do que é meu, e outro diametralmente oposto, de pensar como posso devolver a generosidade da vida. Talvez eu esteja participando tão ativamente da cena política e social do país em consequência disso também.
No dia dos atos bolsonaristas de 7 de setembro, o senhor reproduziu tuíte do ex-governador Paulo Hartung alertando que a democracia brasileira estava sob “ataque pandêmico”. Mesmo após o recuo de Bolsonaro nos ataques ao STF, continua a vê-lo como ameaça? (Silêncio) A democracia é, talvez, a maior conquista do Brasil enquanto sociedade, e a ameaça a ela tem de nos unir acima das nossas ideologias. A democracia deve ser defendida por todos — e, graças a Deus, os democratas são a enorme maioria no país. Sempre estarei do lado dos democratas.
Muitos são céticos sobre a possibilidade de se viabilizar uma terceira via nas eleições de 2022. Concorda que está difícil? As eleições sempre foram um processo muito arrastado no Brasil. Se formos olhar os últimos ciclos eleitorais, a formação do “grid” acontece nos últimos três, quatro meses antes do pleito, ou muito perto da campanha começar. Não acho que dessa vez será diferente. Mas me incomoda o debate público estar tão distante dos problemas reais das pessoas. Temos 15 milhões de desempregados, famílias passando fome, crianças sem aulas, nem 70% da população vacinada com duas doses, e ficamos discutindo armas, voto impresso, briga entre os poderes, fake news. Estou mais preocupado em debater um projeto de país, e não em ter um fulano, sicrano ou beltrano como candidato.
“A democracia é a maior conquista do Brasil enquanto sociedade, e a ameaça a ela tem de nos unir acima das nossas ideologias. Graças a Deus, os democratas são a maioria no país”
Nenhum pré-candidato na praça personifica sua visão do país? Estou muito mais no campo das ideias que no campo das pessoas. Se tudo isso estiver no projeto de alguém, terá o meu apoio. Não quero fulanizar.
Os atos contra Bolsonaro do domingo 12 não vingaram. Por quê? O primeiro passo tem de ser dado. A beleza da democracia é isso: ir para a rua se manifestar, não importa o tamanho da manifestação. Estamos a mais de um ano da eleição e as pessoas já estão se mexendo. Vejo valor em todo tipo de mobilização e isso é da democracia, é por isso que estamos brigando.
Suas ideias lembram as de um presidenciável. Ainda há chance de voltar atrás na decisão de não concorrer? O maior desafio da minha vida começou há apenas quinze dias, e espero primeiro respeitar essa relação que tenho com a Globo e com o público.
O senhor não respondeu nem sim, nem não… Estou atento às cascas de banana que colocam para mim.
Caso a terceira via não emplaque, votaria Lula ou Bolsonaro? Não quero fazer essa escolha agora. Prefiro contribuir para que não tenhamos só duas opções de escolha no ano que vem diante da urna eletrônica.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756