Aquele 8 de janeiro ainda estava longe de terminar quando os manifestantes deixaram a Praça dos Três Poderes. O governo estava acuado, assustado e tinha uma certeza: a invasão e a depredação dos prédios eram apenas a primeira fase de um golpe que ainda estava em andamento para tirar Lula do poder. Havia também a convicção de que setores militares estavam diretamente envolvidos na trama. O “sumiço” da tropa do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) provava que havia uma conivência cúmplice com a turba de vândalos. Atônito, o presidente cobrava uma reação enérgica e imediata. Apoplético, conforme a definição de um de seus auxiliares, Lula ordenou que, ainda naquele dia, o acampamento erguido próximo do quartel-general do Exército fosse desmobilizado — e os envolvidos nos ataques, devidamente presos. “É para tirar e prender todo mundo”, determinou o presidente aos ministros da Defesa, José Múcio, e da Justiça, Flávio Dino. A ordem, como se sabe, não foi cumprida. Um dos motivos foi a resistência de generais a desmontar o acampamento, sob a alegação de que poderia haver um “banho de sangue” no local.
Essa versão, a mais recorrente até agora, também sugere que militares confrontaram e desafiaram a autoridade do presidente, que é o comandante em chefe das Forças Armadas. Ela, no entanto, é apenas uma parte do enredo. VEJA teve acesso a detalhes do depoimento prestado à Polícia Federal pelo general Gustavo Dutra, que chefiava o Comando Militar do Planalto, no inquérito sobre o levante golpista. Ele conta como no auge da tensão, quando o temor de um golpe acossava Lula, o presidente interveio e aceitou que a retirada do acampamento bolsonarista e a prisão da maior parte dos radicais ficassem para a manhã do dia 9, como de fato ocorreu. Foram horas de tensão. Os governistas exigiam o cumprimento das ordens de Lula ainda naquela noite e estavam com forças policiais de prontidão para fazer o serviço. O general Dutra, por sua vez, insistia que não se tratava de boa ideia e defendia o adiamento da operação para a manhã seguinte. Enquanto o impasse prevalecia, militares reforçaram a segurança nas imediações do quartel-general, com direito a tanques e blindados, no que foi interpretado como um ato de rebeldia.
Ao perceber que não conseguia dissuadir os subordinados do presidente, Dutra resolveu driblar a hierarquia e passar por cima do então comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, e do ministro José Múcio. Ignorando a cadeia de comando, ele ligou para o então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves Dias, ressaltou os riscos da ação noturna e pediu que as suas considerações fossem encaminhadas a Lula. Não se passaram nem cinco minutos, e o chefe do GSI retornou a ligação. A resposta não era a esperada: o presidente mantinha a decisão de prender todo mundo naquele mesmo instante. “Vai dar m…! Explica isso para ele, general”, rebateu Dutra. Foi aí que o próprio Lula assumiu a ligação. Do outro lado da linha, o presidente repetia a mesma frase o tempo inteiro: “São criminosos, general! Tem que ser todo mundo preso”. Dutra tentava contra-argumentar, mas era a todo momento interrompido. “São criminosos! Prenda!”, dizia Lula.
Na terceira vez, o militar fez uma ponderação. “Presidente, estamos todos indignados, hoje é um dia triste para o Brasil. Mas, até o momento, nós só estamos lamentando danos ao patrimônio. Se nós entrarmos agora, sem coordenação, vai morrer gente. O senhor quer isso?”. Lula, então, mudou o tom. “Seria uma tragédia”, ele disse. “É isso que eu estou falando para o senhor”. Lula respirou fundo e falou: “General, cerca todo mundo, não deixa ninguém sair da praça e prende todo mundo amanhã”. O general agradeceu a compreensão e desejou boa-noite ao presidente da República. Antes de desligar o telefone, Lula fez uma última pergunta: “O ministro Múcio está aí?”. O chefe da Defesa não estava. “Deveria estar”, disse Lula. Horas antes, o presidente e Múcio haviam se encontrado, e Lula não escondia a indignação com a manutenção do acampamento golpista. O ministro já estava sob fogo cruzado, porque antes mesmo do assalto golpista resistia a desmobilizar o acampamento, chegando a classificá-lo publicamente como uma “manifestação democrática”. Desde que assumiu o cargo, Múcio tenta se equilibrar entre os petistas e os militares. Ciente dos humores do chefe, o ministro até tratou, antes do fatídico dia 8, da remoção do acampamento com o então comandante do Exército, Júlio César de Arruda, que rechaçou a iniciativa. “Aqui ninguém mexe”, dizia o general.
Arruda manteve a posição mesmo após a invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes. Segundo auxiliares de Lula, o general agiu assim para impedir que parentes de militares que estavam no local fossem presos. “Eles foram retirados de lá durante a noite. Só ficaram e foram presos os inocentes úteis”, diz um ministro. Demitido por Lula duas semanas depois dos incidentes em Brasília, Arruda caiu por quebra de confiança na relação com o presidente. No dia da confusão, em meio ao impasse sobre a desmobilização e a prisão dos radicais, o general chamou o então interventor Ricardo Cappelli para uma conversa, da qual também participou Fábio Augusto Vieira, então comandante da Polícia Militar do Distrito Federal, corporação encarregada de executar as ordens de Lula. Os relatos sobre o encontro são contraditórios. De um lado, militares negam que o general Arruda tenha se recusado a cumprir a determinação do presidente. Ele teria apenas defendido a realização de uma operação organizada, à luz do dia, a fim de evitar mais desastres. Já os governistas acusam o general de quebra de hierarquia e até de ameaça.
Conforme o relato de uma testemunha da conversa, o então comandante do Exército perguntou a Cappelli: “O senhor ia entrar com as tropas sem a minha autorização?”. O interventor negou e disse que iria consultá-lo. Arruda, então, virou para o chefe da PM: “Acho que eu tenho um pouco mais de tropas que o senhor, não é, coronel?”. Arruda ainda teria feito uma observação de cunho político para sustentar a posição dele. “Vocês têm que entender que o país está dividido.” O ministro Flávio Dino relatou a integrantes do Supremo Tribunal Federal que Arruda, “completamente alterado”, chegou a erguer o dedo em riste próximo a seu rosto diante da ofensiva governista contra o acampamento. Cem dias após o 8 de janeiro, ainda há muitas dúvidas sobre o que realmente ocorreu. O governo, que ganhou politicamente com o episódio num primeiro momento, ao unir o país em defesa da democracia, agora coleciona contratempos. Na quarta-feira 19, o general Gonçalves Dias pediu demissão depois de a CNN Brasil divulgar um vídeo com imagens da atuação de militares do GSI quando os radicais depredavam o Planalto.
Numa parte das imagens, um capitão distribui água aos invasores, como se estes não estivessem numa ação criminosa. Em outras imagens, o próprio Gonçalves Dias aparece caminhando no 3º andar do palácio, onde fica o gabinete presidencial, enquanto nos andares inferiores os radicais agiam livremente. As imagens tornaram a permanência do general à frente do GSI insustentável e ainda deram fôlego à ofensiva para forçar o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, a ler o requerimento de criação da CPI do 8 de Janeiro, com a qual os oposicionistas querem vender a tese de que Lula e o PT se omitiram diante dos radicais a fim de desgastar a imagem de Jair Bolsonaro e lucrar politicamente. Senadores dizem ter em mãos um relatório elaborado pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão vinculado ao GSI, que apontou para o risco de invasão dos prédios públicos, inclusive com o uso de armas. O governo, intencionalmente, conforme a narrativa dos oposicionistas, nada teria feito em relação a isso. O fatídico 8 de janeiro ainda está longe de acabar.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838