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A Babel de Bolsonaro

Disputas, divergências e a pouca clareza sobre as ações do futuro governo geram brigas, intrigas e confusões entre os aliados do presidente eleito

Por Daniel Pereira, Gabriel Castro Atualizado em 4 jun 2024, 16h07 - Publicado em 14 dez 2018, 07h00

Jair Bolsonaro adotou um tom conciliador ao ser diplomado presidente da República, na segunda-feira 10, em cerimônia realizada no Tribunal Superior Eleitoral. “Serei presidente dos 210 milhões de brasileiros. Governarei em benefício de todos, sem distinção de origem social, raça, sexo, cor, idade ou religião”, disse ele, pregando a união nacional. O objetivo de pacificar o país é ambicioso, diante do radicalismo e da polarização que marcaram a campanha, mas antes de persegui-lo Bolsonaro enfrentará outro desafio: unir a própria equipe de governo e a bancada do seu partido, que protagonizam disputas de poder e divergências em público. Há vários duelos em andamento. Militares e civis disputam a primazia no Palácio do Planalto. Políticos e economistas rivalizam sobre questões como a reforma da Previdência. Filhos do presidente e o vice, general Hamilton Mourão, trocam farpas e provocações. E a bancada do PSL está em pé de guerra. Os bolsonaristas não falam a mesma língua, e o resultado dessa confusão é inequívoco — a duas semanas da posse do presidente eleito, não está claro o que o futuro governo fará no campo dos costumes ou na área da economia.

A reforma da Previdência ilustra à perfeição a falta de sintonia nas coxias da futura administração. O superministro da Economia, Paulo Guedes, queria votar ainda neste ano um projeto sobre o tema que tramita na Câmara e foi redigido pelo governo de Michel Temer. Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil, opôs-se à ideia e defendeu a apresentação de um novo texto, de autoria da gestão Bolsonaro, apenas no ano que vem. Resultado: a reforma ficou para 2019, e até agora não está decidido quando a nova proposta será enviada ao Congresso, muito menos seu teor. Lorenzoni, artífice do núcleo político, alega que é preciso tratar o tema “sem açodamento” e pensar numa solução estruturante, de longa duração. Deputado federal desde 2003, ele sabe das resistências dos parlamentares às mudanças nesse setor. Já Guedes, expoente da equipe econômica, quer aprovar uma reforma o mais rápido possível, mesmo que seja pontual ou fatiada. Ele sabe que os donos do dinheiro graúdo cobram um gesto nesse sentido.

Jair Bolsonaro
ESFINGE – Bolsonaro, que foi diplomado pelo TSE na segunda-feira 10: as prioridades ainda estão escondidas no chapéu (Fátima Meira/Futura Press/Estadão Conteúdo)

Bolsonaro, que se portou como uma esfinge na campanha eleitoral, ainda não arbitrou a questão. A incógnita continua. “O mercado está dando o benefício da dúvida, mas a gente também percebe que essas declarações causam ruído. Não há euforia”, diz Zeina Latif, economista-­chefe da XP Investimentos. “Na dispu­ta entre time econômico e núcleo político, o grande fiel da balança serão as próprias manifestações do presidente. Por isso é que o mercado se preocupa quando ele fala em gradualismo e não demonstra muito compromisso com uma reforma mais abrangente”, acrescenta. A algaravia no escrete bolsonarista decorre de uma combinação de fatores. O presidente eleito dividiu o primeiro escalão de seu governo em núcleos distintos: o da economia, o dos militares, o ideológico, o do combate à corrupção e o dos políticos/civis. Os protagonistas de cada um desses grupos não tinham relação entre si antes de ser convocados por Bolsonaro. Por isso, atuam distantes uns dos outros e, muitas vezes, de forma conflitante.

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Os militares são contrários ao plano de privatização ampla, geral e irrestrita defendido por Paulo Guedes. Eles também resistem a abrir espaços em pastas caras à caserna para indicações políticas, apesar de ministros civis articularem abertamente nesse sentido. Nos governos do PT, divergências e disputas de poder também eram constantes, mas há uma diferença fundamental: os petistas caminhavam juntos fazia décadas e tinham uma trajetória em comum. Já os bolsonaristas se conhecem há pouco tempo e estão distribuídos em grupos sem identidade entre si. Imperam os ruídos e a desconfiança. Os filhos de Bolsonaro, por exemplo, não veem com bons olhos a desenvoltura do vice Hamilton Mourão, que queria coor­denar a máquina administrativa, mas foi desautorizado pelo presidente. Na semana passada, Mourão aumentou a pressão sobre Flavio Bolsonaro, primogênito de Jair e senador eleito pelo Rio, ao cobrar explicações sobre a movimentação financeira milionária realizada por seu ex-motorista (veja a reportagem na pág. 52). “O ex-motorista, que conheço como Queiroz, precisa dizer de onde saiu esse dinheiro. O Coaf rastreia tudo. Algo tem”, declarou Mourão.

Reunião PSL
ÂNIMOS EXALTADOS - O presidente eleito com os deputados do seu partido: tentativa de pedir união e comedimento (Rafael Carvalho/Governo de Transição/Divulgação)

O gesto não passou despercebido, principalmente pelas raposas mais experientes de Brasília, como Renan Calheiros, cuja candidatura à presidência do Senado é combatida por Flavio Bolsonaro. “Preocupa-me declaração do vice-presidente eleito sobre episódio que envolveu o filho do presidente eleito”, escreveu Renan numa rede social. “Talvez estejamos — sou otimista, espero que não — diante do mesmo lugar-comum, da mesmíssima circunstância, do conflito presidente x vice (foi assim com Deodoro x Floriano, Getúlio x Café Filho, Jânio x Jango, Costa e Silva x Pedro Aleixo, Col­lor x Itamar e Dilma x Michel)”, arrematou o senador, fomentando, com picardia, a suspeita de filhos de Bolsonaro de que Mourão pode conspirar para assumir o poder. O plano do vice de coordenar a máquina foi abatido por setores diversos. Civis com cargos no Planalto, como Onyx Lorenzoni e Gustavo Bebianno, futuro ministro da Secretaria-Geral da Presidência, resistiram à ideia. Am­bos já haviam perdido atribuições para outros militares, como o general Santos Cruz, que chefiará a Secretaria de Governo. “A função do Mourão é ser vice”, disse Bebianno a VEJA.

Escanteado, o vice é filiado ao ­PRTB, que está com muito apetite e nada de espaço na futura administração. Presidente da legenda, Levy Fidelix quer a parte que lhe cabe no latifúndio federal. “Não estou falando de carguinho. É participação no governo de verdade. O PRTB ganhou junto, tem de governar junto”, afirmou Fidelix a VEJA. Em tese, Bolsonaro não loteará a máquina entre os partidos. Na prática, está fazendo isso, mesmo que de forma tímida, sob a alegação de que negocia, conforme o prometido, com bancadas temáticas. O presidente eleito já convocou para o ministério três integrantes do DEM e um do MDB. O núcleo político agora negocia para abrir espaço no segundo escalão do Ministério dos Transportes, que será comandado por Tarcísio Gomes de Freitas, ao PR, partido que se envolveu num rumoroso escândalo de corrupção, no governo Dilma Rousseff, justamente nessa pasta. Funcionário de carreira da Controladoria-Geral da União (CGU), Freitas é ligado aos militares, que resistem ao assédio do PR, que, por sua vez, é cortejado por Lorenzoni. Vem mais barulho por aí.

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Lorenzoni, Guedes e Joice Hasselmann
EMBATES - Lorenzoni (acima), Guedes (à baixo) e o coraçãozinho de Eduardo Bolsonaro e Joice Hasselmann(ao lado): “machão” e “fama de louca” (Cristiano Mariz/VEJA/Twitter/Reprodução)

Boa parte dos últimos embates transcorreu nos bastidores, mas um deles ganhou ares públicos com estridência surpreendente: a lavagem de roupa suja dentro da bancada do PSL. Subiram ao ringue os dois deputados mais votados por São Paulo: Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito, e Joice Hasselmann. Líder da bancada do partido até a quarta-feira passada, Eduardo se incomodou com a movimentação de Joice para substituí-lo no posto ou assumir a liderança do governo na Câmara — e resolveu criticá-­la numa rede social. Joice reagiu no grupo de WhatsApp dos parlamentares do PSL, chamando Eduardo de “machão da vez” e ironizando “recadinhos infantis via Twitter”. A tréplica foi contundente: “A continuar assim (Joice) vai chegar com fama ainda maior de louca no Congresso”, digitou o filho do presidente. O to­que de florete veio no “ainda maior”. Após o arranca-rabo virtual, começaram a pipocar vídeos e textos antigos de Joice nos quais ela desqualificava Bolsonaro e suas pretensões presidenciais. Logo em seguida, selou-se o armistício, com os brigados posando juntos para foto — com as mãos formando um coraçãozinho. Joice ainda está em conflito com o senador eleito Major Olimpio (PSL), a quem dedicou a seguinte provocação: “A tropa da truculência espalha veneno, ameaças e mentiras”.

Outro filho do presidente também se envolveu, de novo, em bate-boca. O vereador Carlos Bolsonaro acusou o deputado eleito Julian Lemos de se apresentar indevidamente como “coor­denador de Bolsonaro no Nordeste”. Vice-presidente do PSL, Lemos respondeu divulgando um vídeo em que o próprio Jair Bolsonaro se refere a ele como seu coordenador na região. “Na minha casa o que meu pai falava era respeitado”, provocou. Carlos não se deu por vencido e descreveu o rival como um papagaio de pirata: “Sugerimos parar de aparecer atrás dele por algum motivo, como faz sempre!”. A pessoas próximas, Lemos declarou que o vereador é “doido”.

Enquanto sobram polêmicas, falta clareza sobre quais prioridades serão de fato estabelecidas pelo futuro governo. Um exemplo é a chamada “Escola sem Partido”, defendida com entusiasmo por Bolsonaro e pela futura ministra de Família, Mulheres e Direitos Humanos, Damares Alves. Pois uma comissão da Câmara acaba de arquivar o projeto da “Escola sem Partido” sem que os bolsonaristas tenham estrilado. A mudança de postura talvez decorra de uma intervenção de Olavo de Carvalho, o guru do presidente eleito. “Não se lança projeto de lei para resolver um problema que a maioria nem conhece”, disse ele, num vídeo. E completou: “Vocês estão querendo impor a sua mentalidade estreita ao país inteiro”.

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Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2018, edição nº 2613

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