Há duas bombas sobre a mesa do procurador-geral da República, Augusto Aras. A primeira, que envolve Jair Bolsonaro, ganhou novos complicadores diante da acusação de que o então candidato a presidente foi informado antecipadamente de que haveria uma operação da Polícia Federal que resvalaria no gabinete de seu filho Flávio Bolsonaro, deputado estadual à época e hoje senador. A história, por enquanto, não traz evidências concretas de que o presidente tenha praticado algum crime, mas dá margem a uma série de indagações e suspeitas que precisam ser esclarecidas. A segunda bomba é contra Wilson Witzel, o governador do Rio de Janeiro. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu um pedido de instauração de inquérito para apurar a participação dele num esquema de corrupção nas obras de hospitais de campanha e na compra de respiradores para atender vítimas do coronavírus — o terceiro procedimento aberto em Brasília apenas neste ano para investigar supostas irregularidades que implicam o governador. Os casos abrangem crimes de corrupção, peculato, fraude em licitação, interceptação telefônica clandestina e organização criminosa — um rol de suspeitas já bastante constrangedor para alguém que se elegeu empunhando a bandeira da moralidade e tem a ambição de disputar a Presidência da República em 2022.
Em paralelo, VEJA descobriu que existe uma acusação ainda mais grave contra o governador do Rio. Em março passado, a Procuradoria-Geral da República (PGR) recebeu uma proposta de acordo de delação que contém informações que empurram Witzel para o centro de um novo escândalo. Nela, o governador é apontado como o “chefe supremo” de um esquema montado para extorquir empresas prestadoras de serviço. O enredo da história segue a cartilha clássica dos manuais de corrupção: o governo alega que não tem dinheiro suficiente para quitar as dívidas com os credores, atrasa os pagamentos, acena depois com a possibilidade de uma negociação e, por fim, surge alguém com a solução mágica — quem concorda em pagar propina ganha a preferência na fila do caixa. O autor dessas revelações é o empresário carioca Arthur Soares, conhecido como “Rei Arthur”. Em menos de um ano, segundo ele, o esquema teria arrecadado cerca de 30 milhões de reais com a cobrança de 20% a 30% do valor de cada fatura paga.
Parceiro do ex-governador Sérgio Cabral, o novo candidato a delator era, até pouco tempo atrás, literalmente reverenciado como uma eminência em várias esferas no Rio de Janeiro. Nenhum grande negócio com o estado avançava sem o aval dele ou a participação de uma de suas empresas. Em duas décadas de governo do MDB, Rei Arthur se transformou num homem poderoso e milionário. Ele lucrava alto vendendo serviços e produtos superfaturados ao governo estadual. Ao mesmo tempo, reservava parte dos ganhos para financiar campanhas eleitorais e a boa vida de políticos e servidores públicos corruptos. Preso no ano passado em Miami, onde estava refugiado desde que teve a prisão preventiva decretada pela Operação Lava-Jato, o empresário, entre as muitas tramoias que patrocinou durante seu longo reinado, foi acusado de ter subornado membros do Comitê Olímpico Internacional para votar a favor do Rio como sede dos Jogos de 2016. Ele promete, em troca de redução de pena, contar mais sobre as muitas traficâncias com as quais se envolveu. Seu maior trunfo encontra-se no capítulo intitulado “Anexo governador Wilson José Witzel”.
VEJA teve acesso ao documento, cujos principais trechos estão destacados na reportagem. Nele, o empresário descreve o funcionamento do esquema de corrupção montado pelo governador. Segundo ele, Witzel opera tudo por meio de dois personagens — o pastor Everaldo Pereira, presidente do PSC, o partido do governador, e o secretário estadual da Casa Civil e Governança, o ex-deputado federal André Moura, que é citado na narrativa como o responsável por intermediar as negociações para o recebimento da propina. Arthur Soares conta que teve certeza sobre a existência, a dimensão e os personagens envolvidos depois que foi alvo de um achaque. Ele diz que tinha cerca de 100 milhões de reais a receber do governo. Em julho, seu irmão, Luiz Soares, foi avisado de que a dívida seria integralmente quitada desde que ele concordasse em pagar 20% do valor. O empresário não aceitou, e o contrato de sua empresa com o governo foi suspenso.
A proposta, de acordo com Arthur Soares, teria chegado por intermédio de prepostos do pastor Everaldo, uma figura influente. Foi o presidente do PSC quem abriu as portas do partido ao então juiz Wilson Witzel, em 2018, quando o candidato tinha 1% das intenções de voto. Depois da vitória de Witzel nas urnas, Everaldo foi recompensado com vários cargos importantes no governo. Indicou, por exemplo, o filho Filipe Pereira para a assessoria especial do governador. Para a Casa Civil, escolheu o amigo André Moura, um antigo escudeiro do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. Arthur Soares conta que todos eles estão na mesma empreitada. Na época da suspensão do contrato, Luiz Soares procurou um advogado ligado ao chefe da Casa Civil em busca da “solução”. Nesse encontro, André Moura teria reafirmado o pedido de propina e assegurado que, se o empresário topasse o acordo, o dinheiro seria liberado. As negociações se estenderam até o dia 27 de dezembro, quando Arthur Soares diz ter aceitado a proposta e recebido 8,6 milhões de reais para a empresa Cor e Sabor, que fornecia alimentação para o sistema penitenciário. Em troca, o empresário teria se comprometido a repassar ao secretário 20% desse valor, cerca de 1,7 milhão de reais, em seis parcelas. Moura afirma que nunca se encontrou com interlocutores de Arthur Soares e nega ter alguma participação no esquema de propinas. “Nunca vi esse cara na minha frente nem ninguém ligado a ele. Só ouvi falar das falcatruas dele através de empresas”, garante o secretário. O presidente do PSC, pastor Everaldo, defende a investigação de suspeitas de irregularidades e a punição dos envolvidos com base em provas. Em nota, ele reitera que “não responde pelo governo do Rio” e afirma “não ter relação com o empresário”.
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Clique e AssineArthur Soares não explicou como o dinheiro seria entregue ao secretário, mas disse que, àquela altura, já havia decidido colaborar com a Justiça. Aceitar o acordo era parte de uma estratégia para preparar um flagrante. No início do ano, ele apresentou a proposta de delação à Procuradoria-Geral da República. Acrescentou ao relato documentos, e-mails e mensagens para mostrar que havia uma negociação de propina em andamento. Numa das mensagens, o empresário Sérgio Serrano, um ex-sócio de Arthur Soares que negociava a liberação dos pagamentos junto ao governo, escreve sobre um tal “chefe supremo” — seria Wilson Witzel, segundo o delator. Soares também sugeriu aos procuradores que fosse feita uma ação controlada para monitorar a entrega da propina e rastrear o caminho do dinheiro, nos moldes do que a PGR fez quando Joesley Batista quis provar que estava sendo achacado pelo ex-presidente Michel Temer. As tratativas com o Ministério Público, porém, não avançaram. Os procuradores avaliaram que as provas apresentadas eram insuficientes, e suspenderam as negociações. Mas Witzel permanece na mira da PGR. Ele continua sendo investigado em três inquéritos no STJ. Em nota, o governador disse que se colocou à disposição para prestar quaisquer esclarecimentos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Witzel reitera o seu respeito às instituições e apoia as investigações que estão sendo realizadas pelos órgãos de controle. Cabe ressaltar também que a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) entrou com ação na Justiça e obteve o bloqueio de bens e valores de empresas e pessoas físicas envolvidas nas denúncias de irregularidades de compra de respiradores, cobrando o ressarcimento do que foi pago.
Ao mesmo tempo em que a procuradoria-geral aperta o torniquete sobre Witzel, o inquérito que apura a suposta interferência política do presidente Bolsonaro na Polícia Federal também ganhou novos contornos após o empresário Paulo Marinho ter afirmado que a operação que trouxe à luz os estranhos negócios do ex-policial Fabrício Queiroz foi antecipada à família presidencial antes do segundo turno das eleições. Queiroz, que trabalhou no gabinete de Flávio Bolsonaro quando ele era deputado estadual no Rio, é investigado por suspeitas de recolher parte do salário de funcionários em um esquema conhecido como rachadinha. As revelações de Marinho, feitas ao jornal Folha de S.Paulo, serviram para alimentar a suspeita de que o presidente tenta interferir na PF para proteger seus filhos e amigos de investigações indesejadas. Se no fim do inquérito que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) ficar comprovado que Bolsonaro queria obter algum proveito pessoal, ele poderá ser responsabilizado criminalmente e até afastado do cargo. Caberá a Augusto Aras a decisão de denunciá-lo ou arquivar o caso.
Em setembro do ano passado, logo depois de indicar Aras para o cargo, Bolsonaro comparou o procurador-geral à figura da rainha em um jogo de xadrez. A peça tem a maior capacidade de movimentação e, por isso, é, ao mesmo tempo, a mais potente arma de ataque aos adversários e o mais importante esteio de defesa do rei no tabuleiro. Antes da posse, Aras comentou com um amigo o tamanho da responsabilidade que estava prestes a assumir. “O PGR tem mais poder que o papa”, brincou. É fato. Um procurador negligente pode proteger amigos e perseguir adversários. Um procurador justiceiro pode fulminar carreiras e destruir a biografia de inocentes. Um procurador omisso pode favorecer criminosos. Oito meses depois da posse, Aras terá a oportunidade de mostrar que não é negligente, justiceiro nem omisso diante das bombas que estão sobre sua mesa. É apenas um PGR responsável e meticuloso.
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688