A eleição do mau humor: altos índices de rejeição marcam corrida para 2022
Brasil periga eleger não o melhor ou o mais bem preparado candidato, mas aquele que for menos odiado pelos eleitores — e isso não é nada bom
Em 2014, Dilma Rousseff enfrentava um nível considerável de rejeição em sua campanha à reeleição devido, entre outras coisas, à onda de protestos populares iniciada em junho de 2013. Sob orientação do marqueteiro João Santana, a então presidente — em vez de tentar reverter a sua imagem negativa com realizações e propostas — passou a desconstruir seus principais adversários, especialmente a ex-senadora Marina Silva, que chegou a liderar as pesquisas de intenção de voto. A propaganda eleitoral do PT atribuiu a Marina um pacto com banqueiros para tirar a comida do prato dos brasileiros. Foi apenas uma das mentiras contadas. A estratégia deu certo, a rival perdeu apoio, Dilma foi reeleita, e o resto da história é conhecido. Desde então, a reprovação aos governantes e as campanhas baseadas em agressões e ódio só avançaram. O ápice desse processo será a sucessão presidencial de 2022, considerada desde já por políticos e especialistas “uma eleição de rejeição”, em que deve se sagrar vencedor não necessariamente quem apresentar as melhores propostas, mas quem for menos repudiado pelo eleitor.
A pouco menos de um ano da votação, o ambiente não é favorável aos postulantes ao Palácio do Planalto. Jair Bolsonaro tem índices de rejeição acima de 60%. Seu ex-ministro Sergio Moro, que acaba de se filiar ao Podemos, lida com números parecidos. Os porcentuais de Lula são menores, na casa dos 40%, mas até agora ele não foi submetido à artilharia pesada dos concorrentes, o que certamente ocorrerá. Todos os três têm passivos conhecidos que ajudam a explicar a situação. No caso de Bolsonaro, a pandemia e a crise econômica. No de Moro, a parcialidade na condução da Operação Lava-Jato. No de Lula, os escândalos de corrupção dos governos petistas, com destaque para o petrolão, que rendeu ao ex-presidente 580 dias de prisão. Apesar desses problemas específicos na ficha de cada um, a rejeição não é restrita a eles e nem pontual. Pelo contrário, tornou-se estrutural. Mesmo pré-candidatos desconhecidos do grande público não recebem um voto de confiança do eleitorado. A taxa de rejeição ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), é de expressivos 36%, com um índice de desconhecimento de 56%.
O mau humor do eleitor decorre de uma combinação de fatores. Um deles — antigo e notório — é a insatisfação com a qualidade dos serviços públicos e com o descompasso existente entre o que a sociedade espera e o que os governantes fazem. Outro — mais recente e que serviu de catalisador para a explosão da rejeição — é o clima de acentuada polarização. Hoje, opositores não são considerados simplesmente adversários dos quais se discorda, mas inimigos a ser odiados e, preferencialmente, abatidos. Em disputas eleitorais recentes, o debate de ideias foi perdendo espaço para a animosidade e o ódio. Agora, a pergunta não é mais sobre quem tem o melhor projeto, mas qual sentimento prevalecerá: o antipetismo ou o antibolsonarismo. É o tipo de dilema que só interessa aos envolvidos. Refém da polarização, o país desperdiça a oportunidade de discutir projetos estruturantes — e o eleitor, cansado, perde a paciência e a fé em dias melhores. “Há um sentimento nacional de descrença, de desesperança. Mais do que votar em quem se quer na Presidência, o eleitor hoje pensa em quem ele não quer na Presidência. A eleição de 2022 vai ser motivada pelo ódio”, diz Paulo Guimarães, professor da Unicamp.
A rejeição detectada nas pesquisas de intenção de voto se espraia pelas redes sociais. A pedido de VEJA, a consultoria Quaest mapeou, entre agosto e outubro, 21,7 milhões de menções no Twitter sobre os principais nomes lançados à disputa pelo Palácio do Planalto. Todos eles receberam mais menções negativas do que positivas. O presidente da República responde pela maior fatia no bolo das menções negativas, com 65%. Predomina o “Fora Bolsonaro” no universo digital. Já a fatia de Lula, que estava quietinho nesse período, foi de 17% e nela predominam as referências à Lava-Jato, operação que lhe rendeu duas condenações à cadeia, depois canceladas pelo Supremo Tribunal Federal. “Nenhum candidato mais se safa. Essa crise generalizada tem a ver com uma política que não consegue apresentar soluções concretas para a melhoria da vida das pessoas”, afirma o diretor da consultoria Quaest, Felipe Nunes.
Diante do tamanho do desafio, as campanhas passaram os últimos meses identificando por meio de pesquisas qualitativas o que explica a rejeição enfrentada pelos candidatos e puseram em prática planos para trabalhar a imagem deles. A prioridade de todas as equipes não é divulgar propostas para saúde, educação ou segurança pública, mas explorar os pontos desabonadores do oponente, em um eterno ciclo de ataques mútuos. Do ponto de vista do eleitor, é uma péssima iniciativa, porque engessa o debate, livra o candidato de tratar de problemas reais, como o desemprego e a inflação, e freia qualquer tentativa de uma campanha civilizada. “O efeito disso é extremamente negativo porque representa uma mudança na qualidade da escolha do candidato, que passa a ser considerado não por estar associado a um projeto de país ou a políticas públicas de interesses dos eleitores”, diz o cientista político José Álvaro Moisés, professor da USP.
Um levantamento do DEM, que tem como pré-candidato à Presidência o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta — 46% de rejeição —, identificou que o eleitor está mergulhado em um “ambiente emocional fortemente deprimido” e que usa sentimentos como “vergonha”, “incerteza” e “medo” para expressar o que o brasileiro pensa de seus governantes e das próximas eleições. Já um estudo do Podemos detectou que Sergio Moro é associado negativamente à palavra “decepção”, enquanto Lula anda de mãos dadas com “corrupção” e Bolsonaro, com “incompetência”. Com base em diagnósticos como esses, marqueteiros têm esboçado estratégias para tornar os candidatos mais palatáveis, camuflar seus pontos fracos e driblar a necessidade de prestar satisfações ou debater a fundo temas que os desfavorecem. Não à toa, Lula se vende como inocente, apesar de não ter sido inocentado das acusações de corrupção, e Bolsonaro diz ser o maior responsável pela vacinação, apesar de ter sabotado de início — e de não acreditar até hoje — nos esforços nessa área.
“Os candidatos no Brasil não têm tradição de apresentar uma consistência programática e quem perde é o eleitor. O que Jair Bolsonaro pensa sobre educação, por exemplo, é difícil saber até hoje, no terceiro ano do governo, porque as propostas sempre ficaram em segundo plano”, analisa o professor do Insper e colunista de VEJA Fernando Schüler. Apesar de a campanha eleitoral ainda não ter começado oficialmente (e só oficialmente), não falta chumbo grosso trocado entre as equipes dos presidenciáveis. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, atribuiu a Moro, que comandou a Lava-Jato e prendeu políticos que pilharam a Petrobras, o desmonte da estatal, insinuando que ele tem responsabilidade até pela alta do preço da gasolina. Enquanto o ataque era desferido, Lula divulgava sua imagem sendo aplaudido no Parlamento Europeu e atacava a falta de inserção internacional de Bolsonaro. Já Bolsonaro, em viagem a países do Oriente Médio, reclamava da cobertura da imprensa em relação a Lula. “Eu vi na GloboNews. Bolsonaro decepciona. Lula é um sucesso. Ah! Pelo amor de Deus!”, vociferou o presidente.
“As campanhas deverão ser muito fortes para minorar as fontes de rejeição de cada um, mas só o marketing não vai dar conta. Ninguém deveria vender um invólucro vazio, um produto só pela embalagem”, diz Carlos Pereira, professor de ciência política da FGV. Líder em rejeição, Bolsonaro pretende explorar o novo programa social Auxílio Brasil, que sucedeu o Bolsa Família, para reduzir o índice de reprovação a seu governo principalmente entre quem ganha até dois salários mínimos, grupo que forma metade do eleitorado. Até aqui, o presidente não está batendo de frente com Lula, mas é certo que apelará ao antipetismo, o grande responsável por sua eleição em 2018. Já o ex-presidente promete não fugir do debate sobre corrupção, mas quer levar o duelo para o campo da gestão, sobretudo para as realizações econômicas, na qual acredita ter ampla vantagem sobre o sucessor (esquecido, é claro, do desastre provocado pela afilhada Dilma Rousseff). Além disso, vai explorar os flertes antidemocráticos e preconceituosos de Bolsonaro ao longo dos últimos anos. “Quem é o candidato que está trazendo projeto de Estado, de país? Nenhum. É a eleição ‘do contra’ e baseada em nome. Não no melhor nome”, diz o cientista político Marco Antonio Teixeira, da FGV.
Parece um disco arranhado, para usar uma expressão antiga, mas, evidentemente, as redes sociais exercem um papel crucial nessa dinâmica tão negativa. No passado, as estratégias de comunicação política eram desenhadas basicamente para a televisão — debates e o horário eleitoral gratuito. Havia ataques, claro, mas os candidatos colocavam suas propostas e mediam a reação dos eleitores posteriormente em pesquisas. Manter o Plano Real, por exemplo, foi a grande mola mestra da campanha de Fernando Henrique tanto em 1994 quanto em 1998. Mesmo quando a emoção predominava, ela não vinha com ataques aos adversários. Muitas vezes, os jingles acabavam conquistando adeptos. Alguns deles entraram para a história das campanhas políticas. Hoje, o sistema se move na construção de fake news e bordoadas nos “inimigos”, distribuídas em larga escala por aplicativos e redes sociais como Facebook, Telegram, Twitter e WhatsApp — o tiroteio em Marina Silva, citado no início desta reportagem, já se deu dessa maneira.
Impulsionado pelas redes, o crescimento do ódio levou à situação atual, em que os líderes da disputa gozam de imenso grau de rejeição. Há, evidentemente, quem lucre com isso. Hoje, o malvado favorito de Lula é Bolsonaro, “aquele fascista”. O de Bolsonaro é Lula, “aquele ladrão”. Esse jogo pode até levá-los à vitória eleitoral, mas representa uma tremenda derrota ao país. Trata-se de uma armadilha que contribui ainda mais para o ambiente conflagrado e a instabilidade política, situação que vivemos hoje e que apenas atrapalha a economia. Sucessão presidencial não é briga na lama, e o Brasil — como se sabe — precisa de boas ideias para o que realmente importa: soluções para toda sorte de mazelas, das novas, como a pandemia, às históricas, como a miséria.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765