Até os aliados mais próximos concordam: Jair Bolsonaro tem uma queda inegável por teorias da conspiração. Uma de suas preferidas dá conta de que Adélio Bispo, o autor da facada que ele sofreu durante a campanha eleitoral, não agiu sozinho, como afirma a Polícia Federal (PF), mas a mando de gente poderosa. Outra, mais atual, aponta para a existência de uma ofensiva, com a participação de parlamentares, governadores e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), destinada a tirá-lo do poder. De início, Bolsonaro achava que o objetivo dessa orquestração era impedir sua reeleição. Agora, ele acredita que a meta é cassar seu mandato. Essa crença não teria maiores desdobramentos se, como de costume, fosse compartilhada apenas pela ala ideológica do governo, que enxerga conspiradores em todos os cantos. A diferença, no momento, é que a área militar também concorda com a opinião do presidente de que diversos agentes públicos estão tentando reduzir seus poderes. Foi justamente esse respaldo verde-oliva que levou Bolsonaro a partir novamente para o ataque.
No domingo 3, o presidente participou de mais uma manifestação a favor de seu governo e do fechamento do Congresso e do STF. Com a filha, Laura, a tiracolo, ele desceu a rampa do Palácio do Planalto para confraternizar com apoiadores e, com apenas alguns passos e muitas selfies, desconsiderou outra vez as normas de segurança de combate ao coronavírus e atacou, mais uma vez, as instituições. Mais tarde, mencionou as Forças Armadas como aliadas na defesa de seu governo. “Vocês sabem que o povo está conosco. As Forças Armadas, ao lado da lei, da ordem, da democracia, da liberdade, também estão ao nosso lado”, disse Bolsonaro em vídeo transmitido numa rede social. “Peço a Deus que não tenhamos problema esta semana, porque chegamos no limite. Não tem mais conversa. Daqui para a frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela será cumprida a qualquer preço”, acrescentou, em tom ameaçador. A declaração levou o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, a divulgar uma nota, na segunda-feira 4, para rechaçar a suspeita de que as Forças Armadas estão fechadas com Bolsonaro.
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Clique e AssineNo texto, Azevedo aparentemente enumera platitudes e diz, por exemplo, que “Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado, que consideram a independência e a harmonia entre os poderes imprescindíveis para a governabilidade do País”. Em nenhum trecho, o ministro nega com veemência a possibilidade de a instituição se tornar um braço político do presidente. Um militar da cúpula do Exército explica que há no comunicado, de forma subliminar, recados dirigidos ao STF, ao Congresso e ao próprio Bolsonaro. Quando a nota fala da lei, da ordem e da democracia, a mensagem tem o presidente como destinatário. Quando ressalta a observação ao princípio da independência e da harmonia entre os poderes, os alvos são o STF e o Congresso. No sábado 2, um dia antes de participar da manifestação, Bolsonaro recebeu no Palácio da Alvorada o ministro Fernando Azevedo, os comandantes das três Forças e os generais Luiz Eduardo Ramos, Braga Netto e Augusto Heleno, que são ministros, respectivamente, da Secretaria de Governo, da Casa Civil e do Gabinete de Segurança Institucional. Entre outros assuntos, conversaram sobre deliberações recentes de ministros do STF, com destaque para a canetada de Alexandre de Moraes que suspendeu a posse de Alexandre Ramagem no cargo de diretor-geral da Polícia Federal.
Os ministros militares concordaram com a opinião do chefe de que algumas decisões do Supremo estão tolhendo poderes e atribuições que são exclusivos do presidente da República. O general Luiz Eduardo Ramos disse o seguinte após a reunião: “O Supremo está demais. Com o Supremo não está dando para governar”. A nota dissonante foi o comandante do Exército, Edson Pujol, que não gostou do rumo da prosa, já que a pauta do encontro era o combate à pandemia de Covid-19. Na quinta-feira 30, Pujol já havia deixado o presidente contrariado ao se recusar a cumprimentá-lo com um aperto de mãos. Diante das câmeras de TV, Pujol preferiu, em respeito às recomendações sanitárias, saudar Bolsonaro com o cotovelo. Foi o suficiente para assessores presidenciais divulgarem a versão de que Ramos substituiria Pujol no posto de comandante do Exército. Iniciado o processo de fritura, Ramos se viu obrigado a desmentir a informação publicamente e enviar reservadamente uma mensagem aos grupos de generais: “Não houve e não haverá essa hipótese”. Mas também fez um alerta: “Tenho consciência do grave momento que estamos vivendo”, concluiu.
Bolsonaro gostou tanto do apoio recebido dos ministros militares no Alvorada que cogitou desafiar a mais alta instância do Poder Judiciário. No domingo, depois da confraternização em frente ao Planalto, ele decidiu insistir no nome de Ramagem para a PF. Sua ideia não era empossá-lo no cargo de diretor-geral, o que estava proibido por Alexandre de Moraes, mas nomeá-lo diretor executivo, o segundo cargo na hierarquia da corporação, deixando a cadeira principal vaga. Se fosse executado, esse plano faria de Ramagem o chefe dos policiais federais até que seu superior fosse indicado — o que, obviamente, não ocorreria tão cedo. Na madrugada de segunda-feira, o presidente recuou da ideia e indicou Rolando Alexandre de Souza para comandar o órgão (veja a reportagem da pág. 38).
No delírio presidencial, os ministros do Supremo são listados entre os maiores expoentes da suposta conspiração contra Bolsonaro (veja o quadro). Alexandre de Moraes, que também é relator do inquérito que investiga as fake news e as ameaças contra integrantes da Corte, é tachado de linha auxiliar dos tucanos por pessoas próximas a Bolsonaro. Uma “prova” disso seria a decisão dele que assegurou a governadores e prefeitos a autonomia para que adotassem medidas contra a pandemia. Na tese palaciana, Moraes teria agido politicamente para enfraquecer o presidente e, em contrapartida, fortalecer o governadores do Rio, Wilson Witzel, e de São Paulo, João Doria, cotados como candidatos ao Planalto em 2022. Bolsonaristas garantem que Witzel tem uma parceria com o Ministério Público estadual destinada a manter viva a apuração do esquema de rachadinha no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, com o objetivo de desgastar, sobretudo, o presidente. Já Doria teria um plano bem mais ambicioso: conseguir as demissões de Sergio Moro e Paulo Guedes, duas das mais importantes bases de sustentação do governo. Na cabeça do presidente e de alguns auxiliares, não foi Bolsonaro quem acabou forçando o pedido de demissão de Sergio Moro.
Em teorias da conspiração, às vezes, há um fundinho de verdade (o que não significa que as conclusões a partir de algumas premissas sejam verdadeiras). Paulo Guedes, por exemplo, convenceu Bolsonaro de que Doria se uniu ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), para aprovar projetos que aumentam as despesas públicas e, assim, agravar o rombo fiscal do país. Maia teria embarcado nessa aventura porque gostaria de ocupar a vaga de vice da chapa encabeçada pelo tucano. É verdade que PSDB e DEM podem marchar juntos em 2022. É verdade que Maia pode vir a ser candidato a vice. É verdade também que o presidente da Câmara não deseja dar protagonismo a um presidente que odeia o Congresso. Mas achar que ele quer arrombar as contas públicas com um objetivo tão torpe cruza a fronteira entre o real e o imaginário.
Outro integrante do DEM, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, também teria usado o cargo para fragilizar Bolsonaro ao resistir à flexibilização da quarentena — não por preocupação com a saúde pública, mas para acelerar a debacle econômica, segundo os assessores presidenciais. “Bolsonaro é um presidente sitiado”, disse a VEJA um interlocutor da ala militar. Essa frase transita entre o conveniente e o duvidoso. Conveniente porque o mantra do mandatário sitiado serve de argumento de defesa para Bolsonaro toda vez que ele é cobrado pelos muitos problemas de sua gestão. A lógica é a seguinte: as coisas só não funcionam porque os adversários — de todos os poderes, em todos os níveis da administração — conspiram contra ele. Duvidoso porque a maioria das conspirações é baseada em pura fantasia.
O caso de Moro é ilustrativo. O ex-juiz da Lava-Jato é considerado um “infiltrado” muito antes dos atritos que ele teve com o presidente por causa das tentativas de interferência na Polícia Federal. Em meados do ano passado, Bolsonaro foi informado de que seu então ministro havia jantado com o senador Alvaro Dias, líder do Podemos, em Curitiba. À mesa, Moro teria aceitado ser o candidato do partido à Presidência em 2022 e combinado deixar o governo assim que achasse oportuno do ponto de vista político. Segundo Dias, tal jantar nunca aconteceu. Contra teses malucas, porém, não há argumentos racionais. “O Moro estava vazando informações sigilosas obtidas pela Polícia Federal para prejudicar Bolsonaro e seus familiares”, diz um dos principais conselheiros do presidente, que pediu para não ser identificado. “O Moro usou a falácia da interferência política na PF como álibi para deixar o governo, sair atirando e fortalecer a tese do impeachment. Ministros do STF e alguns congressistas estão com ele”, afirma o mesmo conselheiro. O presidente está convencido disso.
A desconfiança é uma marca do governo e não recai apenas sobre atores externos, de políticos à imprensa. Uma das pessoas mais próximas a Bolsonaro diz que o entorno do presidente também está apinhado de conspiradores. “É mais fácil dizer quem não participa da conspiração contra ele. Não se trata de um cavalo de Troia. O governo tem uma manada de Troia.” Esse tipo de discurso até soa bem aos ouvidos dos convertidos, mas não convence. Ao apostar no conflito, provocar instituições, minimizar a pandemia e se recusar a administrar o país, Bolsonaro é hoje quem mais conspira contra seu próprio governo.
Os personagens da “conspiração”
LUIZ MANDETTA
O ex-ministro da Saúde teria contribuído para a perda de popularidade de Bolsonaro ao defender as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e resistir à pressão do presidente pelo abrandamento da quarentena. Teria feito tudo isso atendendo ao comando de seu partido, o DEM, visando a uma futura aliança com o PSDB.
GILMAR MENDES
Em plena crise, o ministro do STF voltou a debater com parlamentares a adoção do regime semipresidencialista, que reduz os poderes do presidente da República. Também se tornou um crítico das manifestações de rua a favor do governo. Para os bolsonaristas, o ministro atua a serviço do tucano Fernando Henrique, que o indicou para a Corte.
REDE GLOBO
Como os seus antecessores Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer, Bolsonaro acusa a emissora de atacá-lo a fim de desgastar a sua imagem e desestabilizar o governo. O presidente jura ser vítima de uma campanha persecutória e diz, equivocadamente, que há uma profusão de fake news no noticiário.
JOÃO DORIA
Considerado pelo presidente o candidato do establishment em 2022, o governador é apontado como o articulador do plano para inviabilizar o governo. A estratégia principal dele consistiria em minar Sergio Moro e Paulo Guedes, deixando a gestão Bolsonaro órfã de duas das suas principais bases de sustentação. Metade da missão, de acordo com o delírio, teria sido cumprida.
WILSON WITZEL
O governador teria uma parceria com o Ministério Público do Rio destinada a manter viva a investigação sobre o esquema de rachadinha no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Witzel também usaria a estrutura da Polícia Civil para alimentar a suspeita de que a família Bolsonaro tem relação estreita com as milícias.
SERGIO MORO
Bolsonaro suspeitava que o ex-juiz vazava informações sigilosas a fim de alimentar a crise política em torno dele próprio e de seus filhos. Ao acusar Bolsonaro de interferência na PF, Moro teria agido não apenas de olho na eleição de 2022, na qual figura como possível candidato, mas para dar um pretexto à cassação do mandato do presidente.
ALEXANDRE DE MORAES
O ministro é tachado de tentáculo do PSDB dentro do Supremo porque, com suas decisões, deu poderes a governadores e prefeitos para lidar com a pandemia e suspendeu a indicação de Alexandre Ramagem para a PF. Na função de relator do inquérito das fake news, Moraes teria como objetivo apresentar os filhos do presidente como chefes de um esquema criminoso.
RODRIGO MAIA
Ao impor uma série de derrotas ao governo no Congresso, o presidente da Câmara teria como meta estourar as contas públicas, desestabilizar a economia e desmoralizar o superministro Paulo Guedes. Maia é considerado pelo presidente um dos concorrentes à vaga de vice na chapa de João Doria. Esse último dado não é tão delirante assim.
ADÉLIO BISPO
Ao contrário da versão oficial, o garçom não teria agido sozinho ao dar uma facada no presidente durante a campanha. Haveria mandantes do crime, que teriam sido acobertados pela Polícia Federal de Minas, à época controlada politicamente pelo governador petista Fernando Pimentel.
Publicado em VEJA de 13 de maio de 2020, edição nº 2686