A questão é matemática
Reforma da Previdência deixa de ser tabu ideológico e ganha cada vez mais adeptos na esquerda — pelo menos da parte que faz oposição ao governo, não ao país
Em janeiro de 2016, oito meses antes de ser afastada da Presidência, Dilma Rousseff afirmou que “o país teria de encarar a questão da Previdência”. No meio de uma recessão aguda e com as contas no vermelho berrante, a presidente petista argumentou: “Se os partidos políticos de oposição não tiverem um mínimo de compromisso com o país, estarão colocando seus interesses eleitorais na frente dos interesses do país”. Dilma já havia tentado cortar despesas previdenciárias em 2014 por meio de uma medida provisória. Na ocasião, o então deputado de oposição Jair Bolsonaro votou contra o governo, que propunha algumas alterações que constam da proposta que ele, agora presidente, tenta aprovar. A roda gira: hoje, é o PT que tenta bloquear mudanças, com a convocação de greve geral contra a reforma na sexta-feira 14.
“A questão da Previdência”, na verdade, ganhou tal gravidade e premência que já não permite oportunismos. Felizmente, a reforma aos poucos deixa de ser tabu até mesmo na esquerda. “Esse debate não é do governo ou do Congresso, é de todo o país”, diz o governador do Piauí, o petista Wellington Dias, que defende a ideia de que as regras de uma eventual reforma sejam estendidas também para estados e municípios. “Não queremos chegar à situação de estados que tiveram de atrasar salário de servidor”, afirma Dias, referindo-se a Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Rio Grande do Sul. O déficit com aposentadorias e pensões dos servidores no Piauí deve somar cerca de 1,2 bilhão de reais neste ano. No ano passado, o estouro passou de 1 bilhão. “De onde eu tiro isso? De investimentos”, lamenta Dias.
Palavras como as de Dias, voz ainda rara dentro de seu partido, eram impensáveis anos atrás, quando a esquerda se arvorava como defensora de inquestionáveis “direitos dos trabalhadores”. Nada mais distorcido e ultrapassado, segundo o economista Paulo Tafner, especialista em sistemas previdenciários, para quem os partidos de esquerda deveriam ser os primeiros a levantar a pauta da reforma: “O modelo atual é repleto de privilégios e reforça as injustiças sociais”. Enquanto 60% dos aposentados ganham um salário mínimo por mês, o vencimento médio de um funcionário aposentado do Legislativo, por exemplo, é de 29 195 reais. No campo econômico, o combate à desigualdade, causa maior da esquerda no século XXI, precisa ter a reforma previdenciária como pressuposto.
Mais perverso que a desigualdade de vencimentos é o buraco no sistema. Em 2018, aposentadorias e benefícios somaram 749 bilhões de reais, enquanto a arrecadação foi de 483 bi, um rombo de 266 bilhões de reais. Quando a conta não fecha, o corte recai sobre investimentos — sobre educação, saúde, gastos sociais. “Não dá para negar a matemática”, afirma o deputado federal por Pernambuco Daniel Coelho, do Cidadania, evolução do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), que também já foi PPS. “É impossível fazer os investimentos necessários em educação sem resolver o desequilíbrio do sistema de aposentadorias que temos hoje”, pondera Coelho. Júlio Delgado (PSB-MG), que engrossa a fileira dos esquerdistas que advogam a necessidade de revisar o sistema de aposentadorias, resume: “A Previdência virou um buraco sem fundo, que não deixa dinheiro para investir em quase nada. Sem ajustes, a bomba vai explodir não no colo do governo, mas no de toda a sociedade”.
A adesão de políticos de esquerda à reforma, não por acaso, vem acompanhada da sua progressiva aceitação pela opinião pública — 59% dos brasileiros a consideram necessária, segundo pesquisa do Ibope realizada em maio. O apoio ao projeto do governo, é preciso ressaltar, não é incondicional entre os políticos de esquerda ouvidos por VEJA. Mas os pontos de discordância adéquam-se a um razoável ideário social-democrata, sensível ao socorro das camadas mais desassistidas da sociedade. Todos rejeitam, por exemplo, as mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) — pago a idosos e a pessoas com deficiência de baixa renda — e as novas regras da aposentadoria rural. O texto entregue pelo relator Samuel Moreira (PSDB-SP) na quinta-feira 13 na Comissão Especial da Câmara contempla essas reivindicações.
Ainda há uma aguerrida resistência ideológica contra a reforma, e com frequência esquerdistas que a apoiam são estigmatizados como “neoliberais”. Na contramão de seu partido, o PDT, que fechou questão contra a reforma, a deputada por São Paulo Tabata Amaral chegou a falar da “tristeza” que sente diante de deputados que imaginam ser viável manter a Previdência como está. Parte da esquerda, infelizmente a maioria, ainda não aprendeu que deve fazer oposição ao governo, não ao país.
Publicado em VEJA de 19 de junho de 2019, edição nº 2639
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