A sucessão de problemas de Motta: das críticas na Câmara à investigação sobre rachadinha
O histórico recente mostra que casos como esses infelizmente são comuns e costumam dar em nada mesmo quando há confissão da culpa

Numa eventual ausência do presidente e do vice-presidente da República, o presidente da Câmara dos Deputados é o primeiro na linha sucessória. No cargo há seis meses, Hugo Motta (Republicanos-PB) carrega essa e muitas outras responsabilidades inerentes à função. Há duas semanas, enfrentou uma rebelião que ameaçava paralisar os trabalhos do Congresso, teve sua liderança questionada pelos colegas, saiu desgastado do processo, mas conseguiu impedir que uma minoria radical impusesse sua vontade aos demais. Desde o último dia 18, o parlamentar enfrenta um novo constrangimento. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) requisitou a abertura de investigação para apurar indícios de rachadinha e de contratação de funcionários fantasmas no gabinete do parlamentar. Não há, por enquanto, evidências de envolvimento direto dele nas supostas irregularidades, mas é inquietante a simples suspeita de que algo assim possa ter acontecido ou ainda acontecer num lugar que deveria servir de exemplo.

A prática é tão antiga quanto criminosa, mas continua sendo recorrente. Eleitos para resolver os problemas mais prementes da população, deputados e senadores têm direito a polpudas verbas para contratar funcionários que, ao menos oficialmente, deveriam lhes garantir um suporte técnico e logístico para o pleno exercício de seus mandatos. Na prática, porém, o staff não raro é usado para objetivos nada republicanos — servem como cabide de empregos, atendem a interesses particulares e, em casos mais extremados, turbinam os ganhos dos próprios congressistas, mantendo aberta a chaga histórica da confusão entre o público e o privado. Essas suspeitas passaram a recair sobre o presidente da Câmara após a revelação de que ele manteve em seu gabinete três servidores que não cumpriam expediente — uma fisioterapeuta, uma estudante e uma assistente social —, além do curioso detalhe de que a chefe do gabinete do parlamentar tinha procurações de dez funcionários para operar suas respectivas contas bancárias. As denúncias foram publicadas pelo portal Metrópoles e pelo jornal Folha de S.Paulo.
Os deputados têm à disposição uma verba de 133 000 reais para contratar funcionários que, independentemente da qualificação, devem cumprir uma jornada de trabalho de quarenta horas semanais. O controle do staff cabia a Ivanadja Velloso, a chefe de gabinete, que trabalha com Hugo Motta desde que ele se elegeu pela primeira vez, há catorze anos. Antes disso, ela exerceu o mesmo cargo no gabinete do deputado Wilson Santiago, também do Republicanos da Paraíba, onde teve em mãos ao menos uma procuração de um funcionário de Santiago. Uma investigação ainda em andamento descobriu que o tal funcionário não conhecia Brasília e que não tinha a “menor ideia” sobre a movimentação de sua conta bancária ou o valor exato que recebia como “secretário parlamentar”. Ao todo, foram 220 000 reais. A chefe de gabinete e o ex-assessor foram denunciados pelo crime de improbidade administrativa, ao ser constatado, segundo os procuradores, que “eles incorporaram ilicitamente verba pública federal a patrimônio particular” — a famosa rachadinha. Por conta dessas coincidências, o procurador Lucas Furtado pediu a investigação ao TCU. Procurados por VEJA, Hugo Motta e sua chefe de gabinete não quiseram se manifestar.

O histórico recente mostra que casos como esses infelizmente são comuns e costumam dar em nada mesmo quando há confissão da culpa. O deputado André Janones (Avante-MG) foi acusado recentemente pela Polícia Federal de embolsar 131 000 reais das remunerações de dois servidores. Em meio a fartas provas, ele firmou um acordo para ressarcir o valor, pagou uma multa e o processo foi encerrado. Livre na esfera criminal, o parlamentar também foi poupado por seus pares, sendo absolvido no Conselho de Ética. O atual presidente do Senado também se envolveu em um rumoroso esquema de rachadinha. Conforme revelou VEJA em 2021, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) empregou seis funcionárias fantasmas ao longo de cinco anos. Elas, que jamais trabalharam, ficavam com apenas uma pequena fatia da remuneração, e o resto era repassado ao então chefe de gabinete do senador. Mais de 2 milhões de reais foram arrecadados pelo esquema, que jamais respingou em Alcolumbre. O auxiliar dele, assim como Janones, firmou um acordo com a Justiça de não persecução, ressarciu os valores e escapou — atualmente, ele está lotado no Conselho de Estudos Políticos do Senado, com remuneração de 31 000 reais, além de auxílios.
Destino parecido teve o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Investigações revelaram que, quando exercia o mandato de deputado estadual pelo Rio de Janeiro, entre 2003 e 2019, um de seus assessores, o ex-policial militar Fabrício Queiroz, sacava na boca do caixa parte dos salários dos funcionários do gabinete. Segundo o Ministério Público, o esquema rendeu 2,7 milhões de reais apenas para o então deputado. O parlamentar foi denunciado pelos crimes de organização criminosa, lavagem de dinheiro, peculato e apropriação indébita. As provas do caso, no entanto, acabaram anuladas pela Justiça sob o argumento de não terem sido colhidas no foro competente. No Congresso, a situação é a mesma. Tanto Flávio quanto Alcolumbre jamais foram alvos de ações por quebra de decoro. Nos últimos dez anos, o Conselho de Ética do Senado se reuniu apenas 21 vezes — praticamente uma reunião por semestre, boa parte delas dedicada a meros encontros protocolares.

No passado, já houve casos de deputados que usavam recursos públicos para pagar o salário de empregados domésticos, para custear campanhas políticas e até para bancar procedimentos estéticos — sem nunca serem admoestados. O histórico representa um notório “pacto de não agressão”, de acordo com Elida Graziane, professora de administração pública da FGV. “Essa blindagem já virou um comportamento cultural. Os congressistas redesenham as regras do jogo para favorecê-los. Não só nas verbas e emendas, mas na própria esfera da improbidade administrativa, da mudança do foro e das imunidades”, afirma. É um desalento, mas não há nenhum exagero na declaração.
Na última semana, com o potencial escândalo na rua, Hugo Motta não recebeu nenhum questionamento público de seus pares. Em meio ao silêncio, da base à oposição, ele desengavetou uma proposta que amplia ainda mais essa autoproteção. O texto, chamado pelos deputados de PEC da Imunidade, restringe as regras do foro privilegiado e prevê, por exemplo, que o parlamentar preso em flagrante fique detido no próprio Congresso, e não num presídio, até o plenário decidir se mantém ou não a detenção.

O patrimonialismo também está na raiz de pequenos e grandes casos de corrupção. No Supremo Tribunal Federal, por exemplo, há pelo menos oitenta inquéritos em andamento que investigam o envolvimento de deputados e senadores com desvios de verbas. É prerrogativa dos parlamentares, por exemplo, enviar recursos do orçamento federal para a realização de obras nos municípios. Os congressistas costumam concentrar essas verbas em seus redutos, o que é legítimo. Em muitos casos, privilegiam aliados, amigos e empresários parceiros, desde que isso reverta em alguma vantagem pessoal ou eleitoral. É essa a linha tênue que separa o patrimonialismo da corrupção. Na cultura de uma parte ainda considerável da classe política brasileira, não há nada de errado nisso, como também não há nada de errado em usar dinheiro público para contratar um empregado doméstico ou embolsar na surdina parte do salário dos funcionários do gabinete. Seriam privilégios conquistados nas urnas e outorgados pelos eleitores. Afinal, sempre foi assim.
Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2025, edição nº 2958