Desde a redemocratização, as transições entre governos no Brasil aconteceram de forma branda, sem grandes reviravoltas na condução do país pelo novo presidente. Isso ocorreu mesmo na passagem da ditadura para os governos civis, quando os militares entregaram o poder a José Sarney, que havia sido por anos filiado à Arena e tocou uma transição suave, sem nenhum tipo de medida que indicasse retaliação ao regime que terminava. Também foi assim quando o PT chegou pela primeira vez ao poder, em 2003, com Lula. O petista não só recebeu a faixa de FHC como deu sequência a iniciativas positivas do tucano, como a responsabilidade fiscal e a preocupação com a inflação. Clima semelhante se deu na passagem de Michel Temer para Jair Bolsonaro, que levou adiante as reformas e flexibilizações na economia que o antecessor havia iniciado.
A troca de comando que ocorrerá em 2023, no entanto, caminha para ser a maior ruptura política dos últimos anos, em meio a um misto de esperança e de preocupações. Uma das justificativas para essa guinada radical que se desenha em praticamente todos os setores é a necessidade inegável de reconstrução de várias frentes, que vão do resgaste de uma institucionalidade debilitada à mudança de rumo obrigatória em áreas como saúde, educação e meio ambiente, degradadas pela combinação de má gestão, fanatismo ideológico e visões equivocadas sobre as prioridades urgentes do país (veja no quadro abaixo). O espírito que define a motivação no governo que entra pode ser resumido por uma das palavras mais ouvidas nos bastidores da transição ao qualificar o legado de Bolsonaro: “desmonte”.
Uma das áreas em que a mudança deve ser mais profunda é a da saúde. Após uma gestão tumultuada sob Bolsonaro, com quatro ministros durante a pandemia e muita contaminação ideológica do combate à crise sanitária, o governo futuro promete valorizar a ciência e pôr fim ao “negacionismo”, com fortalecimento, por exemplo, do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que enfrenta um dos maiores reveses de sua história. Na educação, o futuro ministro, Camilo Santana, vai ignorar pautas conservadoras do bolsonarismo, como homeschooling, ensino militar e “escola sem partido”, ao mesmo tempo que priorizará uma área escanteada nos anos Bolsonaro: a das universidades públicas e instituições de pesquisa. Outro setor em que a mudança será radical é o meio ambiente. Se o governo de saída teve em Ricardo Salles um ministro que defendia a flexibilização das leis, o desmonte da fiscalização e o incentivo à exploração da Amazônia, a gestão Lula vai caminhar na direção oposta com o retorno de Marina Silva à pasta — entre as promessas estão um “revogaço” de normas legais, a volta da demarcação de terras protegidas, o cerco a atividades como garimpo ilegal e a busca do desmatamento zero. Também haverá mudança na relação com os militares — que perderão espaço no poder — e na política externa, que sob Bolsonaro foi marcada pelo isolamento e por rusgas até com importantes parceiros comerciais (como China e França). “O Brasil vai voltar a ter um perfil diplomático de política universalista, que não se alinha a nenhum bloco, ativo nas organizações internacionais, com prudência diante de um acirramento da rivalidade entre China e Estados Unidos”, acredita Aloysio Nunes, que foi chanceler na gestão Temer. Ao mesmo tempo, é certa a reaproximação com velhos amigos do petismo, como Venezuela, Cuba e Nicarágua, que foram escanteados por Bolsonaro.
Além da necessidade de reconstrução, há uma motivação ideológica para a guinada política que se aproxima — e preocupante, porque envolve principalmente a economia. A indicação de Fernando Haddad como ministro foi vista com ressalvas pelo mercado, que enxerga nele um político selecionado a dedo por Lula para implementar uma visão ultrapassada de como gerar desenvolvimento. As pistas do caminho escolhido já foram dadas pelo novo presidente e incluem o fim das privatizações e o resgate do Estado como indutor do desenvolvimento. “As posições iniciais são de causar espanto, é como fazer a roda girar para trás. Fala em impulsionar o crescimento só com recursos públicos. Como, se o governo mal consegue fechar os orçamentos anuais?”, avalia o cientista político Bolívar Lamounier. Outra indicação de mudança de rumo na direção errada é a recriação do Ministério do Trabalho, que será chefiado por Luiz Marinho. O petista, ligado ao sindicalismo, defende a volta do imposto sindical e o fim da carteira de trabalho “verde e amarela”, que prevê flexibilizações nas relações de trabalho. Lula também empoderou o PT na montagem da estrutura palaciana, como na Casa Civil, onde acomodou Rui Costa, que terá sob o seu guarda-chuva projetos como o Minha Casa Minha Vida e o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).
A guinada ensaiada por Lula é um direito de quem foi eleito, mas o petista deve levar em conta que vai governar um país onde metade do eleitorado apoia as ideias da gestão que está de saída. “O novo governo tem de levar adiante a promessa feita pelo próprio Lula de governar para todos os brasileiros e de entender qual é a demanda dos eleitores que não votaram nele”, diz o cientista político José Álvaro Moisés. O país torce para que o novo governo acerte nas questões essenciais. Lula sabe que não pode errar na reviravolta que insinua. Qualquer derrapada nas questões essenciais terá o poder de abreviar a tradicional lua de mel que os governantes têm no início do mandato.
Publicado em VEJA de 4 de janeiro de 2023, edição nº 2822