Acuado por uma grave crise de reputação, Jair Bolsonaro passou os últimos dias contando um a um os antigos auxiliares que submergiram depois da revelação de que a Receita Federal confiscou no Aeroporto de Guarulhos, em outubro de 2021, um estojo de joias avaliadas em cerca de 16 milhões de reais dado de presente pelo governo da Arábia Saudita à então primeira-dama Michelle Bolsonaro. A mercadoria estava na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, que tentou passar pela alfândega sem declará-la às autoridades e, portanto, sem pagar os impostos devidos, o que pode configurar o crime de descaminho. Revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo, o caso envolve a suspeita de que o casal Bolsonaro queria se apropriar das joias, em vez de incorporá-las ao patrimônio público, como determina a lei. Uma evidência disso é que subalternos do ex-presidente tentaram em pelo menos oito ocasiões reaver o presente milionário. A última delas ocorreu em 29 de dezembro de 2022, dois dias antes do término do mandato do capitão, e contou com a participação do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Não deu certo, e as investidas podem render agora a acusação de advocacia administrativa aos envolvidos.
Por determinação do ministro da Justiça, Flávio Dino, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar o caso. Além de Jair Bolsonaro, que admitiu publicamente ter ficado com um segundo estojo presenteado pelo governo árabe, o almirante Bento Albuquerque, que representava o governo brasileiro na viagem oficial a Riad, em 2021, é considerado peça-chave para o esclarecimento dos pontos nebulosos do enredo. O ex-ministro disse aos funcionários da Receita achar que as joias retidas eram para a primeira-dama. Achava ou tinha certeza? Como ele sabia quem era o destinatário final? Afinal de contas, Bolsonaro sabia do presente assim que ele foi oferecido pelo rei saudita? O ministro também nunca contou de quem recebeu o pacote nem se alertou o ex-presidente da apreensão ocorrida no Aeroporto de Guarulhos. Várias perguntas, aliás, continuam sem resposta e são fundamentais para a compreensão das responsabilidades. Quando Bolsonaro tomou conhecimento da ação dos fiscais? O que ele determinou em resposta? Interlocutores do ex-presidente insistem que Bento Albuquerque não informou Bolsonaro sobre a apreensão dos presentes destinados a Michelle. A tese é controversa, já que ele próprio ganhou um estojo, com produtos da mesma marca suíça Chopard, que guardou para si.
VEJA teve acesso a um ofício enviado ao Planalto pelo Ministério de Minas e Energia dois dias depois da confusão no Aeroporto de Guarulhos. Nele, o chefe de gabinete do almirante Bento Albuquerque informa ao Departamento de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República que, no fim da viagem à Arábia Saudita, lhe foram oferecidos, “por autoridades estrangeiras”, “alguns presentes” e que o ministro, na condição de “representante do presidente”, não tinha como recusar ou devolver. O documento pede a indicação de um representante da Comissão de Ética Pública para analisar o caso e ressalta que “se faz necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado”. O ofício não cita a apreensão do estojo com as joias. O Planalto respondeu no dia seguinte, pedindo que os presentes fossem encaminhados para decidir se eles seriam incorporados ao acervo privado do presidente ou ao acervo público da Presidência. No depoimento que vai prestar à polícia, Bento Albuquerque vai dizer que o emissário que enviou os presentes informou apenas que eles eram para o governo brasileiro. Ao ver as joias, o ministro deduziu que elas seriam destinadas à primeira-dama.
Apresentando-se no eterno papel de vítima de mais uma armação do PT, o ex-presidente, até aqui, não conseguiu rechaçar a suspeita de que ficaria com o estojo apreendido pela Receita. Suas explicações, feitas por meio de seus representantes legais, são pouco convincentes e não dirimem as dúvidas sobre o episódio. “O presidente Bolsonaro, agindo dentro da lei, declarou oficialmente os bens de caráter personalíssimo recebidos em suas viagens, não existindo qualquer irregularidade em suas condutas”, disse por meio de nota o advogado Frederick Wassef, que representa Bolsonaro. Não é bem assim. Para que não houvesse irregularidade de conduta, o destinatário do estojo apreendido teria de desembolsar 12 milhões de reais para reavê-lo, entre impostos e multa. Os auxiliares do capitão preferiram pressionar funcionários públicos para ter a mercadoria de volta, mas fracassaram.
A incorporação de itens de luxo ao acervo privado de Bolsonaro, como o estojo que ele admitiu ter recebido e guardado, viola claramente uma regra do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o direito de ex-mandatários se apropriarem de bens recebidos ao longo do mandato. Em 2016, o TCU impôs limites ao recebimento de presentes pelos chefes do Executivo após identificar que centenas de objetos registrados no acervo da Presidência da República sob as gestões de Lula e Dilma Rousseff haviam simplesmente desaparecido. No caso dos petistas, que anos depois foram obrigados a devolver mais de 470 bens ao Erário, também havia presentes valiosos, mas nunca um mimo havia chegado à casa dos milhões de reais, como ocorre com as joias destinadas a Michelle. Embora o ex-casal presidencial não seja formalmente investigado, o episódio foi resumido por um auxiliar de Bolsonaro como de “altíssimo dano reputacional” para ambos, com efeitos mais imediatos na construção da persona política da ex-primeira-dama, que se preparava para estrear como dirigente do braço feminino do PL.
Confrontado com a repercussão do caso, o ex-presidente, que decidira voltar dos Estados Unidos, postergou novamente o retorno ao Brasil. Já Michelle cancelou sua participação em um evento de comemoração do Dia Internacional da Mulher (sua aparição no 8 de Março foi resumida a um vídeo institucional) e teve de lidar logo na estreia da nova carreira de dirigente partidária com acusações de que, por trás da imagem de mãe zelosa e religiosa, estariam planos para incorporar ilegalmente ao patrimônio pessoal joias do Estado brasileiro.
Diante do quadro, um gabinete de crise foi montado dentro do PL para conter danos políticos ao partido, preocupado desde já com as eleições de prefeitos no próximo ano, e orientar Michelle Bolsonaro sobre como proceder. “Quer dizer que eu ‘tenho tudo isso’ e não estava sabendo? Meu Deus! Vocês vão longe mesmo, hein?! Estou rindo da falta de cabimento dessa imprensa vexatória”, provocou ela, de forma absolutamente atabalhoada e equivocada, nas redes sociais. Em uma tentativa de explicação ao próprio partido, não convenceu os caciques do PL ao atribuir a crise a uma suposta perseguição de jornalistas, que estariam distorcendo o fato de que a intenção dos Bolsonaro sempre teria sido a de incorporar os presentes ao patrimônio público. Na verdade, as evidências até agora mostram o contrário.
A pancada, de fato, veio numa hora absolutamente inoportuna para a ex-primeira-dama. Uma semana antes do escândalo das joias, a cúpula do PL havia alinhavado detalhes finais sobre a futura agenda política de Michelle, que contemplava visitas a municípios de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Os quatro estados são apostas da sigla para pelo menos triplicar o número de prefeitos nas eleições de 2024. “Toda denúncia deve ser investigada com transparência e, neste caso, é preciso aguardar as apurações conduzidas pelo Ministério Público e pela Polícia Federal”, minimiza o mandachuva do PL, Valdemar Costa Neto.
Dentro do partido, porém, o clima é de apreensão, já que o clã Bolsonaro é o principal ativo da legenda. Graças ao ex-presidente, o PL elegeu a maior bancada da Câmara, com quase 100 deputados, o que lhe garante fatias generosas dos fundos partidário e eleitoral. Já Michelle Bolsonaro, além de ser uma aposta para turbinar candidaturas femininas, é considerada até um plano B para o caso de o marido ser declarado inelegível. Ela é cotada como uma concorrente ao Palácio do Planalto, e o PL reservou 1 milhão de reais por mês só para custear as atividades da ex-primeira-dama. Potencial eleitoral ela mostrou que tem. Em 2022, Michelle se engajou na campanha à reeleição de Bolsonaro, causando repercussão positiva, e trabalhou pessoalmente nas campanhas da ex-ministra Damares Alves (Republicanos-DF) ao Senado e da jornalista Amália Barros (PL-MT) para a Câmara. Ambas foram eleitas.
Ciente de seu novo status político e dos danos que o caso pode causar, Michelle tem declarado reservadamente que não sabia do presente, que o marido não lhe contou do imbróglio e que, ao tomar pé da situação, até cogitou analisar os trâmites para a devolução do estojo ao governo saudita. A amigos próximos, chegou a culpar Bento Albuquerque pela confusão. Até agora, no entanto, não tomou nenhuma atitude, a não ser submergir. Ela quer ver se a poeira baixa até o próximo dia 21, quando, com ou sem joias de marca, protagonizará um ato pensado pelo PL como sua entrada triunfal no jogo político. De todo modo, é um mau começo.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832