Ataque frontal: Trump tenta interferência inaceitável nas instituições brasileiras
Embora alguns setores tenham escapado do tarifaço, o presidente americano não recua e agora mira o ministro Alexandre de Moraes, do STF

É compreensível que o presidente de um país democrático use os instrumentos disponíveis em seu arcabouço legal para defender interesses legítimos de seus cidadãos. O governo de Donald Trump, porém, mostrou mais uma vez que não se importa em atropelar protocolos básicos de civilidade e usar de truculência para atingir determinados objetivos. Na quarta-feira 30, ele autorizou o disparo de dois petardos contra o Brasil. O Departamento de Comércio confirmou que mais de 3 000 produtos brasileiros importados pelos Estados Unidos passarão a ser taxados em 50% a partir da próxima semana. O tarifaço, segundo a Casa Branca, segue orientação de uma nova política que tem sido implementada com seus parceiros comerciais. O caso brasileiro, porém, tem uma particularidade. Como disse o próprio Trump, o país está sendo punido com o aumento da alíquota também por patrocinar uma suposta perseguição ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Já o Departamento do Tesouro anunciou a aplicação de sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). E um dos motivos alegados é que o magistrado estaria abusando de seu poder e violando os direitos do ex-presidente. As duas medidas embutem um propósito de extrema gravidade.

Ao vincular o aumento de tarifas à continuidade do processo que vai julgar Jair Bolsonaro dentro de pouco mais de um mês, o governo americano faz chantagem. Empresas nacionais podem entrar em colapso, empregos serão perdidos e a economia pode pagar um alto preço caso a “perseguição” ao ex-presidente continue. A única maneira de evitar que isso aconteça seria o Supremo, sabe-se lá de que forma, fazer de conta que o 8 de Janeiro não existiu, invalidar dezenas de depoimentos que ajudaram a reconstituir os últimos dias de 2022 e queimar as provas da trama golpista urdida por um grupo liderado pelo ex-presidente. Ao tentar constranger Alexandre de Moraes e ameaçar estender as sanções aos outros ministros, o governo americano quer intimidar a Corte da maneira mais ignóbil, em um ataque direto e inédito ao Estado brasileiro. Moraes foi enquadrado na chamada Lei Magnitsky, um dispositivo que permite alcançar em nível global qualquer indivíduo envolvido em crimes graves como terrorismo, genocídio, tortura, execuções e ações que atentem contra a democracia. As restrições de cunho econômico incluem o bloqueio de bens, contas bancárias e ativos nos Estados Unidos ou em qualquer instituição do mundo que opere em dólar. É um banimento inadmissível, sustentado por argumentos falsos.


Scott Bessent, o secretário do Tesouro, por exemplo, afirmou que o ministro atuou contra a liberdade de expressão, inclusive de cidadãos americanos. “Moraes é responsável por uma campanha opressiva de censura e prisões arbitrárias que violam os direitos humanos e fazem perseguições políticas, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro. A ação de hoje deixa claro que o Tesouro vai continuar a responsabilizar todos que ameaçam os interesses dos EUA e as liberdades dos nossos cidadãos”, ressaltou o assessor de Donald Trump. A Lei Magnitsky tem uma abrangência universal. Ela proíbe empresas americanas instaladas lá ou aqui de manter qualquer tipo de relação comercial com o sancionado. Na prática isso significa que o ministro terá problemas, de agora em diante, em utilizar cartões de crédito, acessar redes sociais, manter uma conta de e-mail, fazer uma compra e até pedir um carro por aplicativo — serviços oferecidos por big techs como Google, Amazon e Uber. As punições podem ser estendidas a parentes, se houver indicativos de que eles o estejam ajudando a burlar as regras.


Mesmo que Moraes não tenha bens nos Estados Unidos, a inclusão do nome dele na lista da Office of Foreign Assets Control (Ofac), o órgão encarregado das sanções, abre caminho para punições de empresas nacionais. Já houve precedente. Em 2015, o Departamento do Tesouro americano multou o Banco do Brasil depois de detectar que um braço da instituição em Nova York operou transações financeiras com uma entidade do Irã alvo de sanções. Ainda como exemplo, o Banco do Brasil, em tese, pode ser multado e até impedido de operar no exterior se decidir manter a conta pela qual o ministro recebe hoje seus proventos. “Todas as empresas e instituições sujeitas à jurisdição dos Estados Unidos ficam obrigadas a encerrar vínculos com o sancionado, mesmo que não sejam notificadas para isso. Isso vale para todas, sem exceção: bancos, companhias aéreas, plataformas digitais e bancos”, explica o professor de direito internacional da USP, Solano de Camargo.

O nome do ministro está em uma lista que tem figuras nefastas como o ditador venezuelano Nicolás Maduro, chefes de cartéis mexicanos e genocidas cruéis. Isso, por si só, além de altamente constrangedor, é um completo abuso. O fato desse abuso se prestar a outro ainda maior — pressionar a Justiça brasileira — torna a decisão do governo americano ainda mais abjeta. “Esse ataque a Moraes se estende a todo o Judiciário e também ao Brasil enquanto nação, porque compete ao Estado brasileiro zelar pela proteção de suas instituições”, ressalta Victor Del Vecchio, mestre em direito pela USP.

O ministro conversou com o presidente Lula sobre esse assunto em maio passado, quando o secretário de Estado, Marco Rubio, disse pela primeira vez que pensava em incluí-lo na lista de terroristas, assassinos e violadores de direitos humanos. Na ocasião, o magistrado queria que a diplomacia brasileira se antecipasse às ameaças e deixasse claro para as autoridades americanas o que parecia óbvio: qualquer tipo de sanção contra ele não mudaria um milímetro a disposição da Corte de julgar Bolsonaro. Preventivamente, o governo Lula listou bancos que poderiam ser atingidos pela crise e também as empresas e propriedades de familiares de ministros mantidas no exterior. A diplomacia, porém, pouco ou nada fez, e as ameaças foram aumentando de intensidade, conforme o processo avançava no STF.

Na quarta-feira 30, quando as medidas foram anunciadas, o chanceler Mauro Vieira estava em Washington ainda tentando estabelecer algum canal de comunicação com o governo americano. Consta que ele chegou a se encontrar com Marco Rubio momentos antes do anúncio da sobretaxa. Mas era tarde demais. A decisão já havia sido tomada. No caso do tarifaço econômico, a pancada foi dura, mas em uma intensidade menor do que o previsto. A lista contém um volume grande de exceções — 694 produtos pagarão apenas a tarifa mínima de 10%, entre os quais aviões, produtos siderúrgicos, suco de laranja e petróleo, mas a mensagem de que a maior potência do planeta acredita que pode, do dia para a noite, impor sanções sem nenhum amparo lógico ou legal abre uma avenida de incertezas políticas e econômicas. O que prevaleceu na revisão para baixo de alguns itens não foi um surto de consciência do presidente dos Estados Unidos, mas a necessidade de proteger a indústria e os consumidores americanos, avalia Ibiapaba Netto, diretor da entidade que congrega os exportadores de suco de laranja.

A reação das autoridades brasileiras se limitou, por enquanto, ao campo da retórica. O presidente Lula, satisfeito com pesquisas que têm sido apresentadas a ele segundo as quais o confronto com Trump vem ajudando a recuperar parte de sua popularidade, divulgou uma nota em que classificou como inaceitável a tentativa de interferência do governo americano no STF. “Justiça não se negocia”, afirmou. No Supremo, os ministros se solidarizaram com Moraes nos bastidores e, publicamente, divulgaram uma nota sóbria deixando claro que a Corte “não se desviará do seu papel de cumprir a Constituição e as leis do país, que asseguram a todos os envolvidos o devido processo legal e um julgamento justo”. E houve quem festejasse, a começar pelo deputado Eduardo Bolsonaro. “O custo de apoiar Alexandre de Moraes, seja por omissão, cumplicidade ou conveniência, será insuportável. Para os indivíduos e também para suas famílias. Chegou a hora da escolha: estar com Moraes ou com o Brasil”, escreveu o parlamentar, tido como o principal incentivador das ações retaliatórias do governo americano. O pretexto do Zero Três é “restabelecer a democracia no Brasil”, como se isso fosse necessário. Pura balela. O objetivo claro de sua cavalgada pró-Trump é salvar o pai da prisão por tentativa de golpe.

A temperatura deve aumentar nas próximas semanas. As cúpulas da Câmara e do Senado preveem uma “crise sem precedentes” na retomada dos trabalhos no Congresso, marcada para a próxima semana. Eleitos com o apoio do PT de Lula e do PL de Bolsonaro, Hugo Motta (Republicanos-PB) e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) serão pressionados pelos dois lados. As lideranças bolsonaristas do PL vão tentar aproveitar o momento para fazer avançar o projeto da anistia aos condenados do 8 de Janeiro e as propostas que reduzem as prerrogativas dos ministros do STF. Do outro lado, o PT quer impulsionar o pedido de cassação do mandato de Eduardo Bolsonaro por “traição à pátria”. É difícil fazer uma projeção mais precisa sobre as consequências políticas e econômicas das medidas anunciadas pelo governo Trump. A única certeza é que o estrago nunca é pequeno quando radicais se unem a um presidente autoritário para pôr em prática um ataque frontal à soberania brasileira.
Colaboraram Amanda Péchy e Márcio Juliboni
Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2025, edição nº 2955