Entre muitos lances políticos, a independência do Brasil, que neste ano completa seu bicentenário, foi marcada pelo primeiro confronto direto entre as tropas desde o primeiro momento leais a dom Pedro I e aquelas que optaram por seguir subordinadas à Coroa portuguesa. Nascia ali, junto com o país autônomo e soberano, o Exército nacional, e a partir de então é praxe que a comemoração oficial do 7 de Setembro tenha um tom nitidamente militar, com as Forças Armadas marchando e exibindo poderio diante de autoridades e da população.
Desde que chegou à Presidência, porém, Jair Bolsonaro, que é capitão reformado e cultiva afinidades com a cúpula fardada, tem procurado misturar a celebração da data com a de sua própria pessoa, convocando apoiadores para barulhentas manifestações de apoio — uma apropriação indébita que nem mesmo os generais da ditadura aproveitaram tanto. No ano passado, com o Planalto em confronto aberto com o Supremo Tribunal Federal, a exaltação cívico-bolsonarista foi especialmente ruidosa. Neste ano, a se julgar pelos preparativos, a expectativa é que o Dia da Independência se transforme no Dia de Bolsonaro Candidato e que a festa ganhe um tom de comício eleitoral.
O presidente vai marcar presença em pelo menos dois atos turbinados pelo comparecimento de seus eleitores. Em Brasília, pela manhã, assistirá ao tradicional desfile, com esperança de que bolsonaristas lotem a Esplanada gritando o slogan moldado nas redes sociais para este 7 de Setembro: “Eleições limpas já — Supremo é o povo”. A poucos metros dali, o coração de Pedro I, conservado em formol na cidade do Porto desde sua morte, em 1834, e trazido ao Brasil em homenagem um tanto mórbida ao bicentenário, estará exposto para visitação no Palácio do Itamaraty. Mas o ponto alto dos festejos será à tarde, no Rio de Janeiro, cidade que é o berço político de Bolsonaro e onde ele precisa de um empurrão para encostar em Luiz Inácio Lula da Silva, à frente nas pesquisas (o governador Cláudio Castro, candidato à reeleição, pretende pegar uma palinha no palco-palanque).
Evidentemente, a celebração popular de uma data tão importante em nossa história é algo positivo, ainda mais no aniversário de 200 anos. A questão é o contexto em que toda essa movimentação está inserida. Trata-se de um ato em favor de um candidato (e não do país) e com um risco de provocação a um dos poderes da República — no caso, o STF. Por motivos que não revelou, o comando militar quis transferir o tradicional desfile na Avenida Presidente Vargas, no Centro, para Copacabana, um ponto muito mais vistoso e concorrido. A prefeitura invocou questões logísticas e não permitiu. Intrépida, a tropa resolveu então concentrar as comemorações no Forte de Copacabana, fincado em um extremo da mesma praia, área sob jurisdição do Exército.
À primeira vista, a comemoração será menos grandiosa, com disparos de canhão ao longo de todo o dia e hinos executados pela banda militar. Mas fora do forte as Forças Armadas estão armando um festival. A Aeronáutica preparou uma apresentação da Esquadrilha da Fumaça. Paraquedistas vão se lançar de aviões e pousar na faixa de areia. A Marinha programou uma parada naval com seus principais navios de guerra e mais alguns de outros países, que vai singrar o mar do Recreio dos Bandeirantes ao Leme. “Será um verdadeiro carnaval militar”, resume um general da ativa, que vê em um evento dessa envergadura a intenção de atender aos propósitos do governo.
Em paralelo ao espetáculo militar, bolsonaristas estão organizando uma motociata e uma passeata de jet ski (tomara que bem longe da parada naval) animadas por dez carros de som dispostos ao longo da Avenida Atlântica, alugados por movimentos de direita. Tudo, se possível, com o cuidado de não descumprir a legislação eleitoral, que proíbe que agendas de governo sejam transformadas em ações de campanha. A mobilização já levantou pelo menos uma suspeita do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, que abriu investigação para averiguar se há desvio de finalidade por parte das Forças Armadas em torno das comemorações deste 7 de Setembro.
Os políticos mais próximos ao presidente não escondem a intenção de fazer do Dia da Independência um evento midiático capaz de gerar impacto nas urnas. “O objetivo é mostrar que pesquisa não quer dizer nada, a rua diz tudo”, afirma, sem disfarces, um deputado federal do círculo mais próximo a Bolsonaro. Ex-ministros como Ricardo Salles e Eduardo Pazuello e o ex-secretário de Cultura Mario Frias, bem como o primeiro-amigo Hélio Negão, todos candidatos à Câmara dos Deputados, puxam a corrente que incessantemente convoca seguidores, nas redes sociais, a bater o ponto em Copacabana. Nos bastidores, auxiliares de Bolsonaro ventilam a versão de que o presidente não deve discursar — para não exagerar nas agressões ao Judiciário e perder votos do centro e para não correr risco de infringir a lei eleitoral —, mas sabem que o comportamento dele é imprevisível.
No ano passado, Bolsonaro discursou em Brasília e em São Paulo afirmando que não respeitaria as determinações judiciais dos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, a quem chamou de “canalha”. Em resposta, a multidão bradou “Eu autorizo”, em alusão a uma intervenção militar. Os ânimos acirrados resultaram em um punhado de processos e pedidos de prisão contra os principais organizadores, no bojo dos inquéritos conduzidos por Alexandre de Moraes. Por isso mesmo, as reuniões da tropa de choque bolsonarista para discutir ações no 7 de Setembro têm sido cercadas de segredo. “Cachorro mordido por cobra tem medo até de linguiça”, ironiza Levi de Andrade, ativista e advogado do caminhoneiro Zé Trovão e do jornalista Oswaldo Eustáquio, ambos já investigados e monitorados por tornozeleiras eletrônicas pela atuação em 2021.
As mensagens de bolsonaristas em torno dos atos do Dia da Independência (leia no quadro), presentes em 14 000 grupos de WhatsApp monitorados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), estão recheadas de críticas ao ministro Moraes, associam Lula à imagem de ex-presidiário e repisam a invenção de que haverá fraudes nas urnas eletrônicas. Pelo sim, pelo não, os integrantes do TSE e do STF estão agindo nos bastidores para isolar e impedir que o público e caminhões se aproximem das sedes dos tribunais, como quase ocorreu no ano passado, mobilizando a PM do Distrito Federal e treinando agentes para se infiltrar na multidão. Uma coisa é certa: no 7 de Setembro do bicentenário, o tradicional desfile militar ficará relevado a um tímido segundo plano.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805