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Bolsonaro não reconhece derrota e sai do poder pela porta dos fundos

Em despedida melancólica, presidente abandona o trabalho antes do fim do mandato e deixa Brasília mergulhada em clima de apreensão

Por Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h52 - Publicado em 30 dez 2022, 06h00
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  • Desconfiado por natureza, Jair Bolsonaro experimentou como poucos a solidão no poder. A foto acima foi tirada em dezembro de 2019, quando ele encerrava o seu primeiro ano de mandato, ainda não tinha fechado um acordo com o Centrão e já acreditava ser alvo de uma conspiração para derrubá-lo ou impedi-lo de disputar a reeleição. Com poucos amigos, sua diversão no fim de semana se resumia a dar algumas voltas de motocicleta numa via interna do Palácio da Alvorada. Três anos depois, o capitão se sente ainda mais solitário, reclama da traição de antigos aliados e encerra de forma melancólica seu governo. Primeiro mandatário a não conquistar a reeleição, ele não reconheceu o resultado das urnas, praticamente abandonou o trabalho depois de ser derrotado por Lula e se negou a passar a faixa presidencial ao sucessor. Em sua saída à francesa, demonstrou o que sempre teve desde que entrou no Palácio do Planalto: desprezo pela democracia, pelas instituições e pela liturgia do cargo. Para piorar, não desautorizou seus apoiadores mais radicais, que planejaram até um atentado terrorista a fim de impedir a posse de Lula.

    George Washington confessou o crime e disse que seu objetivo era 'instalar o caos'
    TERRORISTA – George Washington: plano para criar o caos e facilitar o golpe – (Polícia Civil-DF/.)

    Após o fracasso no segundo turno das eleições, Bolsonaro se tornou uma espécie de presidente decorativo. Recluso na residência oficial, mergulhado em profunda tristeza e às voltas com o tratamento de uma ferida na perna, ele despachou no Palácio do Planalto menos de dez vezes, suspendeu as tradicionais lives semanais e dedicou as poucas aparições públicas — seis exatamente — a eventos militares. Seus principais auxiliares também deixaram o trabalho de lado. Um deles, ainda em novembro, comprou um pacote de férias para passar o fim de ano no Nordeste. Outro, de malas prontas para curtir a virada de ano numa praia paradisíaca, reclamou da decisão do chefe de não passar a faixa a Lula e, preocupado, pediu à sua equipe que checasse se caberia a ele, o auxiliar, executar a missão. “Vai acabar com o meu réveillon”, desabafou, antes de ser informado de que não teria de herdar o papel reservado a Bolsonaro. Teve ainda quem antecipou a saída do governo, como Fábio Faria, ministro das Comunicações, que pediu exoneração no último dia 21.

    ARSENAL - Munição de sobra: 160 000 reais em armamentos, incluindo fuzis -
    ARSENAL - Munição de sobra: 160 000 reais em armamentos, incluindo fuzis – (Polícia Civil-DF/.)

    A forma como se dá a despedida da Presidência seria apenas um problema pessoal de Bolsonaro não fosse um detalhe. O capitão nunca abandonou o discurso contrário à segurança do sistema eleitoral, jamais reprimiu seus apoiadores mais radicais e, assim, contribuiu para que certos grupos mantivessem aspirações golpistas e as mobilizações a favor de uma intervenção militar. Desdobramentos dessa postura são conhecidos. Em 12 de dezembro, dia em que Lula foi diplomado pela Justiça Eleitoral, um grupo de vândalos que frequentavam o acampamento nas cercanias do Quartel-General do Exército invadiu as ruas de Brasília incendiando carros e ônibus e provocando uma baderna generalizada. Eles chegaram a tentar invadir a sede da Polícia Federal em protesto contra a prisão de um indígena que apoia Bolsonaro e havia feito convocações favoráveis ao golpe militar.

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    Na véspera do Natal, os níveis de conflagração ganharam contornos mais preocupantes, com a realização de uma ação tachada de ato terrorista por autoridades públicas. Uma bomba caseira foi deixada por um autodeclarado apoiador de Bolsonaro sobre o eixo de um caminhão de combustível e, por sorte, encontrada pelo motorista momentos antes de fazer o descarregamento em um posto de gasolina localizado no Aeroporto de Brasília. O artefato estava dentro de uma caixa de papelão e, conforme informações preliminares da perícia, chegou a ser acionado, mas não detonou. Houve uma “falha”, segundo o delegado Robson Candido: “Se esse material adentrasse no aeroporto, próximo a um avião com 200 pessoas, seria uma tragédia jamais vista em Brasília”, registrou.

    QG DO GOLPE - Agrupamentos radicais: aposta no terrorismo para tentar impedir a posse do novo governo -
    QG DO GOLPE - Agrupamentos radicais: aposta no terrorismo para tentar impedir a posse do novo governo – (Eraldo Peres/AP Photo/Image Plus)

    No curso das investigações, dois homens foram inicialmente identificados como participantes da tentativa de ataque. George Washing­ton Sousa confessou ter confeccionado o material e entregado a um outro homem que também frequentava o QG do Exército em Brasília. Aos investigadores, Washing­ton contou ter tirado uma licença de CAC (colecionador, atirador e caçador) em outubro do ano passado e investido cerca de 160 000 reais na compra de armamentos pesados, como pistolas, fuzis e munições.

    O objetivo do atentado terrorista era criar um cenário de guerra que obrigasse as Forças Armadas a “pegar em armas e derrubar o comunismo”. Ou seja: impedir a posse de Lula e garantir a permanência de Bolsonaro. O episódio aumentou a tensão e o clima de apreensão para a posse do presidente eleito e fez com que as equipes de segurança reforçassem o esquema de proteção. A Polícia Federal destacou um contingente de mais de 1 000 homens, o maior já escalado para cerimônias desse tipo, e as polícias Civil e Militar do Distrito Federal estarão com um efetivo de 8 000 agentes de prontidão. O próprio governo Bolsonaro autorizou o uso da Força Nacional no evento. A pedido do próximo ministro da Justiça, Flávio Dino, o Supremo Tribunal Federal proibiu o porte de armas em todo o Distrito Federal até o dia 2 de janeiro.

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    SEGURANÇA - Dino: cuidados reforçados em articulação com o governo do DF -
    SEGURANÇA - Dino: cuidados reforçados em articulação com o governo do DF – (Andre Borges/EFE)

    Por razões óbvias, o plano de segurança para a posse de Lula é mantido sob sigilo. Em conversas com a reportagem de VEJA, algumas das autoridades relataram parte da estratégia, que pode ser alterada conforme a análise de risco captada ao longo do evento. No próximo dia 1º, Lula deve deixar o hotel em que está hospedado em um carro blindado e seguir até a catedral, percorrendo uma distância de 3 quilômetros. De lá, terá início o desfile oficial, e ainda não está definido se ele estará em carro aberto, como é praxe, ou fechado. Agentes de segurança aconselharam o presidente eleito a usar um colete à prova de balas, mas ele resiste sob o argumento de que o aparato lhe causa desconforto e calor. Todo o acesso à Esplanada dos Ministérios deve estar fechado para carros, ônibus e caminhões. Para chegar a pé à cerimônia será necessário passar por revistas policiais. Atiradores de elite e helicópteros também vão monitorar o evento, enquanto outros agentes estarão infiltrados no meio do povo.

    Ainda está desenhada uma série de planos de contingência caso algo saia errado, com helicópteros, carros e ambulância de prontidão para a eventual necessidade de retirada emergencial do presidente eleito ou de populares. Nos últimos dias, a equipe de Lula pressionou o governo do Distrito Federal e o Exército a desmobilizarem o acampamento que reúne os bolsonaristas — por acordo com eles ou, se necessário, pelo uso da força. Se os radicais não forem desmobilizados, o perímetro do QG deve ser isolado, para que eles não alcancem em massa a Esplanada. “Esses preparativos garantem o principal, que é a posse presidencial com segurança”, afirmou Dino. Os organizadores esperam pelo menos 100 000 pessoas no evento. Bolsonaro, claro, bateu pé no gesto mesquinho de se recusar a entregar a faixa presidencial ao sucessor, estará longe dali, completando seu roteiro pensado de desprezo à democracia. Não poderia haver despedida mais melancólica e vergonhosa.

    Publicado em VEJA de 4 de janeiro de 2023, edição nº 2822

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