Em 1985, Fernando Henrique Cardoso se sentou na cadeira de prefeito de São Paulo antes da eleição, na qual acabou derrotado por Jânio Quadros. Desde então, reza a sabedoria política que não se ganha — nem se perde — uma votação de véspera. Com candidatos em todas as corridas presidenciais desde a redemocratização, o PT conhece bem essa lição, até porque perdeu páreos em que começou como franco favorito. Mesmo assim, na virada do último ano, alguns quadros do partido passaram a apostar na possibilidade de vitória do ex-presidente Lula no primeiro turno, como se Jair Bolsonaro (PL) não tivesse chances de recuperação. O tempo passou, o mandatário está reconquistando popularidade e, agora, são os aliados dele que cantam vitória. Ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira diz que logo as pessoas farão cálculos sobre a chance de Bolsonaro liquidar a fatura no primeiro turno. Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira segue a mesma linha e afirma que só o imponderável pode impedir o ex-capitão de conquistar um novo mandato. Impulsionado pela polarização, o pêndulo balança ao sabor da conjuntura — e esta, neste momento, traz sinais positivos para Bolsonaro e derrapadas perigosas de Lula.
Duas pesquisas recentes ilustram bem a situação ao mostrar o encurtamento da distância entre os favoritos (veja o quadro). De janeiro a abril, a vantagem de Lula sobre Bolsonaro nas simulações de primeiro turno caiu 6 pontos porcentuais, segundo o levantamento do Ipespe. Na sondagem da Quaest, a redução foi de 8 pontos no mesmo período. Em ambos os casos, o ex-capitão ganhou terreno, e Lula se manteve estável. Uma combinação de fatores explica esse movimento. Um deles foi a saída de Sergio Moro da disputa, numa decisão que não é definitiva, conforme a versão do ex-juiz da Lava-Jato, mas que setores de seu novo partido, o União Brasil, consideram irreversível. Na divisão do espólio de Moro, Bolsonaro foi o grande beneficiado, conquistando a maior parte dos eleitores de seu ex-ministro da Justiça. “A saída de Moro foi o maior presente, até o momento, à pré-campanha de Bolsonaro. Há muito não se via nas intenções de voto do primeiro turno um movimento tão vigoroso em intervalo tão curto”, disse o cientista político Antonio Lavareda, diretor do Ipespe. Nas duas últimas semanas, o presidente ganhou 2 pontos na pesquisa espontânea e 4 na estimulada. Nelas, ele marca agora 27% e 30%, respectivamente, ante 36% e 44% de Lula.
Apesar do reajuste do preço dos combustíveis, da polêmica em torno da escolha do novo presidente da Petrobras e da persistência da inflação acima da casa dos 10%, Bolsonaro também se beneficiou do aumento do número de eleitores que consideram que a economia está no rumo certo e avaliam o governo como bom ou ótimo. Como queriam os coordenadores de sua campanha à reeleição, o presidente tem se dedicado mais a ações capazes de carrear votos, como o Auxílio Brasil, a redução de tributos de produtos da cesta básica e a antecipação do pagamento do 13º salário de aposentados e pensionistas do INSS. Ao mesmo tempo, ele está gastando menos energia com desatinos retóricos, provocações institucionais e guerras imaginárias, que ajudaram a manter seu núcleo de apoio mais fiel arregimentado, mas afastaram parte de seu eleitorado de 2018. Políticos e especialistas alegam que, com essa nova estratégia mais propositiva, Bolsonaro está conseguindo reconquistar parte daqueles que, em determinado momento de seu mandato, deixaram de apoiá-lo. A rejeição ao PT e os escorregões de Lula ajudam a completar o serviço (veja o quadro).
Quando petistas subiram no salto alto e começaram a falar em vitória no primeiro turno, Lula estava jogando parado. Ele atuava basicamente nos bastidores e deixava Bolsonaro se desgastar sozinho, em razão das múltiplas dificuldades que o governo enfrenta, como a pandemia de Covid-19, a inflação e a carestia dos alimentos. Com a recuperação do adversário nas pesquisas, petistas têm exortado o ex-presidente a colocar a campanha nas ruas e participar de atos que reúnam não apenas seus apoiadores tradicionais, como tem acontecido até aqui. A ideia é que ele dialogue com eleitores de centro numa tentativa de atenuar a rejeição ao PT e de afastar as suspeitas — devidamente alimentadas pelos rivais — de que fará uma gestão radical, e não moderada. Por enquanto, Lula se recusa a abandonar o seu cercadinho, mas, mesmo ao falar a plateias domesticadas, ele tem dado munição aos oponentes. Na terça-feira 5, o ex-presidente criticou a classe média brasileira durante um evento promovido pela Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT. “Nós temos uma classe média que ostenta um padrão de vida que nenhum lugar do mundo a classe média ostenta”, declarou.
O diagnóstico pode até ser correto, o que depende da avaliação de cada um, mas ao divulgá-lo Lula fez um movimento no mínimo temerário em termos eleitorais, por encomendar um desgaste sem ser provocado. Segundo as pesquisas, o petista tem ampla vantagem sobre Bolsonaro entre quem tem renda mensal de até dois salários mínimos: 56% a 24%, de acordo com a Quaest. Na faixa de dois a cinco salários mínimos, a diferença é bem menor, de 43% a 33%, e no topo da pirâmide há empate entre os dois candidatos. Diante de tais números, seria mais recomendável a Lula usar as mãos para afagar, e não para manusear a palmatória contra a classe média. O ex-presidente deu outras duas declarações que, de acordo com seus próprios aliados, representaram um erro do ponto de vista eleitoral. Num evento da Central Única dos Trabalhadores (CUT), ele sugeriu à militância sindical que procure parlamentares e seus familiares, inclusive em suas casas, para pressioná-los a apoiar projetos de interesse da classe trabalhadora. “Se a gente mapeasse o endereço de cada deputado e fossem cinquenta pessoas na casa, não é para xingar não, é para conversar com ele, com a mulher dele, com o filho dele, incomodar a tranquilidade dele, surte muito mais efeito do que fazer a manifestação em Brasília”, afirmou. Lula, que vive acusando Bolsonaro de ameaçar a democracia e intimidar os outros poderes, pareceu estimular uma ação orquestrada para coagir o Congresso.
A fala foi logo compartilhada pelas milícias bolsonaristas nas redes sociais, assim como outra do ex-presidente, ainda mais explosiva, sobre o aborto. O PT considera o aborto uma questão de saúde pública e, por isso, simpatiza com a ampliação das previsões legais que permitem a prática. “No Brasil, as mulheres pobres morrem tentando fazer um aborto porque é proibido, é ilegal, quando na verdade deveria ser transformado numa questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha”, disse o ex-presidente. Neste caso, o diagnóstico está correto, mas embute um risco de desgaste desnecessário em época de pré-campanha. Petistas admitem que essa pregação — apesar de coerente com a história partidária e de servir para demarcar mais uma diferença entre Lula e Bolsonaro (o progressista contra o retrógrado, na versão do PT) — atrapalha os esforços do partido para estreitar laços com o eleitorado religioso. Eles alegam que a defesa do aborto até poderia ser feita, mas não agora, enquanto os evangélicos, por exemplo, parecem mais próximos de Bolsonaro do que do ex-presidente.
Mensurada pelas pesquisas, a recuperação do ex-capitão ocorre num momento em que estão no ar as inserções da propaganda partidária do PT, muitas delas estreladas por Lula. Enquanto o rival avança, o ex-presidente está estável e vê sua vantagem diminuir. Numa tentativa de reação, o partido divulgou nos últimos dias encontros de seus quadros com representantes do empresariado e dos bancos, segmentos que apoiaram Bolsonaro em 2018. Como em 2002, Lula quer vender a imagem de paz e amor. A dificuldade, como ocorre com seu principal adversário, é resistir à tentação de falar publicamente o que está em sua cabeça.
Publicado em VEJA de 13 de abril de 2022, edição nº 2784