Uma das capitais mais jovens do país, Campo Grande, em Mato Grosso do Sul (criado em 1977), não é frequentemente lembrada no noticiário nacional. Com a aproximação da sucessão municipal, no entanto, uma movimentação que envolve alguns dos maiores caciques nacionais colocou a cidade no mapa da confusão eleitoral. A disputa pela prefeitura virou palco para uma troca de caneladas entre partidos à direita, em especial o PP e o PL, e criou uma saia justa entre aliados históricos, como o ex-presidente Jair Bolsonaro e a senadora e sua ex-ministra Tereza Cristina, que tem reduto eleitoral no estado, e dois chefes de partidos, Valdemar Costa Neto (PL) e Ciro Nogueira (PP).
O pano de fundo da encrenca é um movimento inusual feito pelo partido de Bolsonaro. Inicialmente fechado com a prefeita Adriane Lopes (PP), o PL abandonou a empreitada e se aliou ao PSDB, sigla que nacionalmente não figura na órbita de aliados preferenciais do bolsonarismo. Em 2022, o tucanato liberou seus diretórios para apoiar Lula ou Bolsonaro, mas os principais líderes tucanos, como FHC, José Serra, Tasso Jereissati e Eduardo Leite, apoiaram o petista. Já o PP é um aliado tradicional e fez parte da trinca que caminhou ao lado de Bolsonaro na campanha presidencial, com PL e Republicanos. Mais do que isso, o PP ocupou espaços importantes no governo do ex-presidente, com a Casa Civil chefiada por Ciro e a Agricultura comandada por Tereza Cristina.
O apoio do PL, sacramentado por Bolsonaro, ao candidato tucano, Beto Pereira, desencadeou o curto-circuito na direita. A movimentação enfureceu o deputado Marcos Pollon, que publicou um vídeo em que diz que jamais apoiaria um tucano e lançando-se pré-candidato à prefeitura. O arroubo teve reação imediata: ele foi afastado por Valdemar do comando estadual da sigla, da qual pode se desfiliar por ter se sentido traído. Tereza e Ciro também não gostaram e foram até Brasília para dizer isso pessoalmente a Bolsonaro na sede do PL na semana passada — o encontro terminou com sorrisos amarelos para fotos e promessas de que não haveria nenhum rancor, mas o ex-presidente avisou que não abandonaria o acordo com o PSDB. Tereza Cristina, que em 2022 foi preterida na escolha do vice por Bolsonaro, que preferiu o general Braga Netto, não está contente. “Tínhamos a nossa aliança, mas são estratégias partidárias do PL, sobre as quais não tenho interferência”, diz.
A lógica do acordo pode ser explicada pelo fato de Mato Grosso do Sul ser considerado hoje um “tucanistão”. O partido comanda nada menos que 51 dos 79 municípios do estado, que é administrado pelo tucano Eduardo Riedel. A aliança, que atende ao interesse do PL de fazer o maior número de prefeitos e vereadores, foi firmada com Reinaldo Azambuja, ex-governador por dois mandatos e cotado para uma vaga ao Senado em 2026 — não pelo PSDB, mas pelo PL. “O Bolsonaro é quem tem escolhido os candidatos nas principais capitais, e eu aceitei”, diz Valdemar. “Com isso, o ex-presidente convidou o Azambuja a vir para o PL. Estamos negociando.” O alto tucanato desconfia. “Não vejo a possibilidade de o Azambuja ir para o PL. Ele é muito enraizado no partido, é tucano histórico, presidente do PSDB estadual e secretário-geral da legenda”, diz Marconi Perillo, presidente nacional da sigla. “A verdade é que o PSDB está se desintegrando, e o Azambuja é um tucano que não quer ficar sem galho em 2026”, avalia um importante político local.
O surpreendente imbróglio entre PP e PL rachou a direita na cidade. Além da prefeita do PP e de Beto Pereira, que terá um vice do PL, está na corrida a ex-deputada Rose Modesto (União Brasil), ex-vice de Azambuja, que é quem lidera as pesquisas. O arco de alianças em torno de Pereira, aliás, vai alinhar do mesmo lado de Bolsonaro políticos do MDB da ministra Simone Tebet (que é do estado) e do Podemos, da senadora Soraya Thronicke, que virou um dos desafetos do bolsonarismo em 2022. A divisão pode favorecer a única candidata de esquerda, a deputada Camila Jara (PT), que terá como vice um nome bem tradicional no estado: Zeca do PT, governador por dois mandatos.
Está certo que a política no Brasil é conhecida por produzir malabarismos, principalmente em ano eleitoral, mas não é preciso voltar muito no tempo para achar estranha a aproximação entre Bolsonaro e PSDB. Em dezembro, quando consolidou a retomada de seu protagonismo no ninho tucano, Aécio Neves foi categórico ao dizer que a prioridade era acabar com a polarização entre PT e bolsonarismo. “Existe vida inteligente entre esses extremos, e o PSDB tem a responsabilidade de liderar um novo caminho”, disse em entrevista a VEJA. O novo PSDB, porém, chamou de “natural” a aliança com Bolsonaro em um dos estados que governa (os outros são Rio Grande do Sul e Pernambuco). Os antigos aliados do ex-presidente, como se vê, não acharam tão natural assim.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902