O significado da maior festa cívica do país acabou sendo sequestrado ao longo das últimas décadas por vários governos, de acordo com o perfil e os interesses do poder à época. Exemplo disso foram os tons ufanistas que a comemoração do fim do domínio português sobre o Brasil ganhou no período da ditadura. Os militares transformaram o 7 de Setembro numa espécie de exibição do golpe da legalidade. No fim desse período de trevas, as batidas da fanfarra passaram a saudar a harmonia entre os poderes da República sob um regime civil. Na sua vez de comandar a celebração, infelizmente, Jair Bolsonaro preferiu atravessar o desfile democrático, notabilizando-se por converter a data num ato de afronta às instituições. Já ocorreu em 2021 e, tudo indica, se repetirá em 2022, numa escala maior. “Ele vai anunciando o ‘Independência ou Morte’ como um brado igual ao do príncipe que rompe com seu pai em 1822”, compara a historiadora e antropóloga da USP Lilia Schwarcz. “Bolsonaro seria esse príncipe mitificado que tem de romper com o pacto eleitoral do Brasil para impor a independência”, completa ela.
Fiel a esse enredo golpista justificado em seus discursos por teorias da conspiração relacionadas a uma inexistente vulnerabilidade das urnas eletrônicas, o presidente elevou nos últimos dias o tom bélico relacionado à celebração do próximo 7 de Setembro. A atual escalada coincide com as dificuldades do projeto de reeleição diante do atual favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas. A senha foi dada no domingo, 24, durante convenção do PL no Ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Na ocasião, sob o pretexto da “defesa da liberdade”, Bolsonaro convocou os militantes a ir às ruas defender seu governo. Sem citar nominalmente os ministros do Supremo e do TSE, falou em “fraude” e em “exigir transparência” aos “surdos de capa preta”.
As declarações multiplicaram os burburinhos nas redes sociais bolsonaristas. Entre os dias 24 e 26 de julho, termos como “medo do 7 de setembro”, “convocou o povo” e “7 de setembro eu vou” entraram nos trending topics do Twitter, segundo levantamento feito pela Quaest. Na comparação com o feriado do ano passado, a convocação dos atos que marcaram ataques ao ministro Alexandre de Moraes ocorreu duas semanas antes do evento e mobilizou na internet 171 000 interações nos primeiros sete dias. Desta vez, em apenas três dias, a um mês e meio da data, o montante de curtidas, comentários e compartilhamentos já representou 51% do total de 2021. No Telegram e no WhatsApp, tão logo Bolsonaro desceu do palco da convenção, começaram a pipocar publicações nas centenas de grupos de apoiadores enaltecendo seu discurso e convocando os aliados. No dia seguinte, as primeiras caravanas passaram a ser formadas, tendo como destinos principais Brasília e São Paulo.
A mobilização dos bolsonaristas nas redes se propaga à base de temas que fazem vibrar os seguidores mais radicais do presidente: montagens com ministros do Supremo, memes lembrando casos de corrupção da gestão Lula e exibição de armas. Em alguns deles aparecem palavras como “revolução” e “guerra civil”. Coberto com a bandeira do Brasil e segurando um fuzil nos braços, o delegado da Polícia Civil paulista Paulo Bilynskyj, com quase 700 000 seguidores no Instagram, publicou na última semana uma sequência de ações de treinamento em que se refere à manifestação dos bolsonaristas. Em uma delas, diz que se “o capitão já convocou para irmos às ruas em 7 de setembro, qual sua opinião sobre um possível ataque?”. Na sequência, ele desce de um veículo Parati e atira contra um alvo estático, feito de papelão. “Esse perfil de influenciadores digitais de extrema direita é um recado claro de que está aberto o processo de haver um confronto armado real”, afirma o vereador de Porto Alegre Leonel Radde (PT), que mapeia grupos bolsonaristas e extremistas de direita nos submundos das redes sociais do Brasil.
Em um ótimo sinal de que o país não ficará à mercê dessa onda, a convocação da tropa de radicais feita por Bolsonaro mereceu uma reação da sociedade e das instituições, inédita no volume. Reunido na terça 26 com juristas do grupo Prerrogativas, alinhados à candidatura de Lula, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Edson Fachin, afirmou, sem citar Bolsonaro — nem precisaria, de fato —, que o TSE “não se omitirá”. Até o procurador-geral da República, Augusto Aras, que é muito alinhado aos interesses do Planalto, se posicionou, divulgando no YouTube o vídeo de uma reunião com parlamentares da oposição ocorrida há duas semanas na qual afirmou estar “atento” a “distúrbios” no Dia da Independência.
Entre a sociedade civil, mais de 250 000 pessoas, entre empresários, banqueiros, intelectuais, juristas, artistas, ex-ministros de governo e do STF assinaram um manifesto em defesa da democracia a ser lido no próximo dia 11, na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, da USP, de onde foi lançado. Inspirado na “Carta aos Brasileiros” lida no mesmo local em 1977, em repúdio à ditadura militar, o texto cita a campanha de 2022 como “momento de imenso perigo para a normalidade democrática” (Bolsonaro reagiu, chamando o manifesto democrático de “cartinha”). Alerta semelhante foi feito em manifesto publicado por empresários de peso como Luiza Trajano (Magazine Luiza) e Roberto Setubal (Itaú). Há ainda o movimento “Em Defesa da Democracia e da Justiça”, articulado pela poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Existem claros sinais de que a sociedade está saindo do estado abúlico em que esteve durante vários anos, indicando que Bolsonaro deve pensar dez vezes antes de perpetrar algum desvario”, diz o cientista político Bolívar Lamounier, signatário de dois dos manifestos.
Considerando-se que a movimentação do próximo 7 de Setembro pode ser maior que a do ano passado, a forte reação contra essa marcha problemática não tem nenhum exagero. Em 2021, a data ficou marcada pelo discurso bélico de Bolsonaro na Avenida Paulista, no qual chegou a prometer que não cumpriria mais determinações do STF, deixando o país em suspense diante de tamanha irresponsabilidade e afronta ao Poder Judiciário. Agora, os bolsonaristas falam em reunir 1 milhão de manifestantes na Paulista, oito vezes mais que o público do ano passado. Coletivos de extrema direita como Damas de Aço, Voluntários da Pátria e Movimento Conservador Ordem e Progresso, entre outros, fizeram o cadastro junto à polícia para ocupar a avenida no feriado.
No ano passado, os petardos incendiários lançados contra o Supremo acabaram amenizados pela atuação de bombeiros, sobretudo o ex-presidente Michel Temer. Responsável pela indicação de Alexandre de Moraes ao STF, em 2017, o emedebista foi acionado pelo Palácio do Planalto para colocar panos quentes nas declarações do capitão por meio de uma carta, que Temer escreveu e Bolsonaro assinou e divulgou após sutis reparos. O ex-presidente também atuou como intermediário de um telefonema entre Moraes e Bolsonaro na ocasião. Apesar do tom virulento dos torpedos presidenciais, o clima serenou e não houve maiores desdobramentos. Curiosamente, todo esse esforço foi realizado porque Bolsonaro havia se convencido de que a situação ficara ruim para ele. Um ano depois, o erro volta a ser repetido.
Desta vez, eventuais arroubos do presidente no 7 de Setembro podem sofrer consequências mais duras diante de uma vigilância exponencialmente maior. Como os atos do feriado ocorrerão em pleno período eleitoral, adversários de Bolsonaro podem acionar diretamente o TSE para puni-lo. Declarações de afronta às urnas eletrônicas, para citar um dos alvos mais comuns da retórica do capitão, são passíveis de ações por abuso de poder político, por exemplo. Em última instância, um processo do tipo pode render até a cassação de chapa (o que levaria a uma situação potencialmente muito perigosa).
Além do mais, sentado na cadeira de presidente do tribunal estará ninguém menos que Alexandre de Moraes, cuja posse está marcada para 16 de agosto. Moraes já deu declarações duras de como pretende se portar na condução das eleições, sobretudo a respeito da disseminação de fake news, e mostrou na prática que tem monitorado de perto o radicalismo e a rede de ódio bolsonarista nas redes sociais. Na semana passada, mandou prender o militante Ivan Rejane Fonte Boa Pinto, que fez ameaças ao STF. “É uma data historicamente reservada ao exercício da cidadania, porém estamos em período eleitoral e é preciso observar limites para preservar a legitimidade e a normalidade das eleições, como prevê a Constituição. O TSE estará atento para que estes parâmetros não sejam violados”, confia o ex-ministro do STF e do TSE Ayres Britto.
As atitudes golpistas de Bolsonaro emulam a receita da onda autoritária e populista que tomou forma no exterior, sendo os Estados Unidos o exemplo mais lembrado. O plano nada original de convocar a população para “lutar” pela nação já foi executado por Donald Trump, por sinal, principal ídolo político do presidente brasileiro. Derrotado por Joe Biden nas eleições de 2020, Trump pôs o processo eleitoral em xeque, contestou o resultado e incitou seus apoiadores a invadir o Capitólio. A Justiça americana não está disposta a deixar barato o lamentável episódio. Segundo a comissão do Congresso que investiga o caso, há provas de que Trump realmente ajudou a insuflar a invasão do Capitólio, mesmo sabendo que muitos manifestantes estavam armados, além de ter ignorado apelos de assessores e aliados para que acalmasse a turba. Imagens mostram o momento em que o ex-presidente se recusa a ler o discurso preparado por sua equipe e insiste que a eleição foi fraudada.
A despeito de vários pontos em comum entre o comportamento do ex-presidente americano e de Bolsonaro, há uma diferença significativa entre Estados Unidos e Brasil: a postura dos militares. “Lá eles sempre interditaram qualquer discussão de ruptura democrática. Aqui a gente tem uma leniência de parte das Forças Armadas e das polícias”, afirma o cientista político Leandro Consentino. A distribuição recorde feita pelo Palácio do Planalto em cargos à turma da caserna e a repetição da escolha de um vice militar fazem parte da tentativa de Bolsonaro de garantir apoio entre os fardados (vale lembrar que o companheiro de chapa da vez é o general Braga Netto, um dos mais entusiasmados propagadores de ideias golpistas nos bastidores de Brasília).
A inspiração para o discurso de Bolsonaro, no entanto, não vem só de Trump. Outro ponto em comum entre líderes autoritários ao redor do mundo é a invocação do sentimento de nacionalismo — e isso fica claro quando os autointitulados “patriotas” saíram às ruas no 7 de Setembro de 2021 com bandeiras do Brasil a pretexto de defender a nação das supostas ameaças do Judiciário. Essa característica está presente também na Hungria, liderada pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, que chegou a conseguir votos no Parlamento para mudar a Constituição do país em 2011, introduzindo referências a Deus, ao orgulho da pátria e à família. O método de Bolsonaro se assemelha ainda ao adotado pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, a quem já admitiu admirar, mas hoje se coloca como opositor ferrenho. Ataques às instituições, ao Judiciário e à imprensa eram características comuns do chavismo.
Embora Bolsonaro encare o próximo 7 de Setembro como uma espécie de “tudo ou nada” na busca pela reeleição, a movimentação não é bem vista por uma parte de sua campanha, empenhada na quase impossível tarefa de amenizar sua imagem. Nos bastidores, a crítica é de que todo esse discurso radical, na verdade, tira votos do presidente. A hora era de mostrar conquistas como a reforma da Previdência, o marco do saneamento legal, as privatizações, o superávit primário — e não criar uma guerra imaginária. Entre a oposição, a ordem para o dia da comemoração dos 200 anos da independência é ficar longe de qualquer confusão. Em eventos programados para as próximas semanas, Lula defenderá a paz, acusará o outro lado de agressivo e falará aos militantes que evitem confrontos. Em São Paulo, a reinauguração do Museu do Ipiranga, depois de quase três anos de obras, ocorreria em 7 de setembro e foi antecipada pelo governo tucano em um dia, a fim de evitar embates.
É lamentável que, em vez de comemorar os avanços do país nos últimos 200 anos e pensar nos próximos e necessários passos para a retomada do caminho do progresso, a data cívica tenha se tornado motivo de tamanha preocupação. Responsável pelo atual estado de tensão, Bolsonaro colecionou todas as vitórias de sua carreira dentro das regras do sistema eleitoral e pode até se reeleger em outubro, mas parece tomado pelo desespero de quem tem pouco tempo e poucos argumentos para virar o placar desfavorável. O chamamento do capitão feito na convenção do PL representa sua nova tentativa de sequestrar a celebração da independência em nome de seus objetivos políticos mais imediatos. É um caminho perigoso que, de forma cada vez mais explícita, aposta em levar radicais às ruas para acender o pavio da bomba de uma ruptura institucional. Os alertas e reações vieram em hora oportuna e, ao que tudo indica, esse movimento de contenção democrática tende a crescer. Tomara. Afinal de contas, a grande maioria dos brasileiros espera que essa data tão importante não entre para a história pelos motivos errados.
Publicado em VEJA de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800