Bretas é acusado de negociar penas, orientar advogados e combinar com o MP
Delação de advogado aprovada na PGR aponta que o juiz teria até influenciado uma eleição política. Entre as provas, está um áudio com a voz do magistrado
Em outubro do ano passado, um advogado pouco conhecido em Brasília, mas famoso em algumas rodas do Rio de Janeiro, telefonou para o Supremo Tribunal Federal (STF). Havia muito se ouvia falar dele em gabinetes importantes da capital. Assustado, o criminalista acabara de ser alvo de mandados de busca e teve celulares e computadores apreendidos pela Polícia Federal. Nythalmar Dias Ferreira Filho, de 31 anos, queria uma audiência com o ministro Gilmar Mendes, um crítico ferrenho dos métodos considerados pouco ortodoxos empregados pelos investigadores da Lava-Jato. Ele se dizia vítima de perseguição e queria consultar o ministro sobre a possibilidade de obter um acordo de colaboração. Em troca de benefícios, se propunha a testemunhar e apresentar provas de graves ilegalidades que, segundo ele, foram cometidas pelo braço fluminense da operação. Sem saber exatamente do que se tratava, Mendes não o atendeu. O advogado, porém, não estava blefando e insistiu com outras autoridades. O que ele estava disposto a contar, afinal, tinha tudo para se transformar em mais um ruidoso escândalo judicial.
Cinco meses depois dessa primeira tentativa, Nythalmar assinou um acordo com a Procuradoria-Geral da República. VEJA teve acesso à íntegra dos anexos apresentados pelo advogado — os resumos dos segredos que o colaborador se compromete a revelar às autoridades. O alvo principal do delator é o juiz Marcelo Bretas, responsável pelos processos da Lava-Jato no Rio de Janeiro. O magistrado ganhou notoriedade pelo seu trabalho à frente da 7ª Vara Federal em processos que resultaram na prisão de políticos importantes, como o ex-presidente Michel Temer e o ex-governador Sérgio Cabral, e de empresários do porte de Fernando Cavendish, ex-dono da construtora Delta, e Eike Batista, que já foi um dos homens mais ricos do país. Segundo o criminalista, Bretas não é imparcial. Muito pelo contrário. Ele se comporta como policial, promotor e juiz ao mesmo tempo: negocia penas, orienta advogados, investiga, combina estratégias com o Ministério Público, direciona acordos, pressiona investigados, manobra processos e já tentou até influenciar eleições — evidentemente tudo à margem da lei.
Nythalmar promete apresentar provas de todas essas acusações. A principal delas é a gravação de uma conversa entre ele, o juiz e um procurador da República encarregado da Lava-Jato. Em 2017, os três discutiam uma estratégia para convencer o empresário Fernando Cavendish a confessar seus crimes mediante o oferecimento de algumas vantagens judiciais. No áudio, cuja transcrição faz parte do material obtido por VEJA, o juiz diz a Nythalmar, representante de Cavendish, que havia sondado o Ministério Público sobre um acordo e, caso tudo saísse como combinado, poderia “aliviar” a pena do empresário. “Você pode falar que conversei com ele, com o Leo, que fizemos uma videoconferência lá, e o procurador me garantiu que aqui mantém o interesse, aqui não vai embarreirar”, diz Bretas ao advogado. Leo é o procurador Leonardo Cardoso de Freitas, então coordenador da Lava-Jato no Rio de Janeiro. O procurador também participava da conversa, realizada através de videoconferência. Na sequência, Bretas garante que a sentença do empresário será abrandada.
“E aí deixa comigo também que eu vou aliviar. Não vou botar 43 anos no cara. Cara tá assustado com os 43 anos”, diz o juiz. Conhecido pela rigidez de seus veredictos, Bretas, ao citar os tais “43 anos”, se referia ao pânico que se espalhou entre os investigados quando ele anunciou sua decisão de condenar por corrupção o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-presidente da Eletronuclear, a 43 anos de prisão logo no início da Lava-Jato, em 2016. A sentença imposta a Pinheiro, naquele momento a maior da operação, gerou um temor generalizado nos réus. “Foi boa então você ter colocado 43 no Othon, né?”, elogia o advogado no diálogo gravado. Entre risadas, Bretas confirma: “É, ooo”. A conversa produziu os resultados esperados pela trinca. Logo Cavendish começou a confessar seus crimes e mais tarde assinou um acordo de delação premiada com o Ministério Público. O empreiteiro, entre outras revelações, confessou o pagamento de milhões em propina a vários políticos e, em troca, ganhou o direito de responder ao processo em liberdade.
No anexo da delação, em que detalha a importância do áudio apresentado como prova da suposta atuação irregular de Marcelo Bretas na Lava-Jato, o advogado diz que a conversa “demonstra de forma inequívoca que o juiz responsável, juntamente com os membros da força-tarefa, montou um esquema paraestatal, ilegal de investigação, acusação e condenação”. “O diálogo demonstra claramente que o juiz não só tinha ciência das colaborações antes de serem fechadas, bem como participava, negociava e intermediava com a ciência, participação e cooperação do MPF nas investigações, fato este gravíssimo”, relata o delator. Para garantir o direito de qualquer cidadão a um juiz imparcial, a lei proíbe que julgadores se aliem a acusadores ou a advogados em busca de um resultado judicial comum, que participem da produção de provas ou integrem as negociações para a formalização de acordos de colaboração. Qualquer atitude nesse sentido fere o devido processo legal e torna-se uma afronta ao estado democrático de Direito. No ano passado, o STF anulou uma condenação no caso Banestado por considerar que o então juiz Sergio Moro atuou de forma ilegal ao colher o depoimento de um delator e anexar documentos ao processo sem avisar a defesa.
Desde 2016, Nythalmar Ferreira atuava na Vara comandada por Marcelo Bretas. A proximidade dele com o juiz sempre suscitou rumores de que o jovem advogado recebia tratamento privilegiado, especialmente devido à sua rápida ascensão profissional e à invejável carteira de clientes que conquistou, o que lhe rendeu, inclusive, a investigação por tráfico de influência que resultou nas buscas em seu escritório. No acordo de delação, o advogado faz um raio-X de suas relações com o juiz da Lava-Jato fluminense e relata que de fã incondicional de pautas lavajatistas passou a presenciar pressões para que réus confessassem crimes em troca de penas mais brandas ou, no caso de empresários, a sobrevivência de seus negócios. Em um dos episódios mais notáveis desse comportamento impróprio, revela o delator, o juiz intermediou um acordo informal com o ex-governador Sérgio Cabral em que a moeda de troca seria poupar a ex-primeira-dama Adriana Ancelmo das investigações de corrupção.
No Anexo II do acordo de colaboração, Nythalmar afirma que, por volta de maio de 2018, a pedido do filho de Cabral, procurou Bretas com a proposta de livrar Adriana. O juiz concordou, ajustou os detalhes com o procurador Eduardo El Hage, então chefe da Lava-Jato no estado, e deu orientações para que Cabral e a ex-primeira-dama redigissem uma carta de próprio punho “abrindo mão de todo o patrimônio”. Para dissimular a combinação, Nythalmar afirma que o MP recorreu da decisão — tudo acertado entre as partes. Preso em Bangu 8, Sérgio Cabral passou a confessar seus crimes a Bretas em junho de 2018. Em agosto do mesmo ano, o magistrado revogou a prisão domiciliar de Adriana Ancelmo e autorizou que ela respondesse às acusações em liberdade. O delator informou que tem guardada uma gravação que “demonstra a participação, ciência e aquiescência de acordo similar” ao do ex-governador.
Desde o início da operação, os investigadores da Lava-Jato nunca esconderam suas desconfianças em relação à atuação dos juízes dos tribunais superiores de Brasília. No Anexo IV da delação, Nythalmar revela que Bretas e os procuradores se uniram numa manobra que constrangeria o ministro Gilmar Mendes, relator dos casos que envolviam o Rio de Janeiro. Em São Paulo, havia uma investigação que tinha como alvo o ex-presidente da empresa paulista de infraestrutura rodoviária (Dersa) Paulo Preto, apontado por delatores como operador financeiro do PSDB. Gilmar, como se sabe, tem ligações históricas com políticos do partido — ele foi indicado ao STF pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Na tentativa de pegar algum elo entre o investigado e o ministro, Bretas e os procuradores fluminenses tentaram transferir essa investigação para o Rio de Janeiro. Além do constrangimento, a mudança de jurisdição poderia ser usada como argumento para a escolha de um novo relator do caso. O objetivo da manobra era abrir “caminho, na visão deles, para a Lava-Jato de São Paulo ocorrer no Rio de Janeiro com mais tranquilidade, sem ser tolhida ou vigiada pelo ministro Gilmar Mendes”. O delator informou que é possível recuperar a troca de mensagens que existe entre ele e o juiz que detalham ponto a ponto essa estratégia.
Punido recentemente pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) por ter participado de atos políticos ao lado do presidente Jair Bolsonaro, Marcelo Bretas até há pouco tempo não escondia sua proximidade com detentores de mandatos eletivos. O mais notório deles, o ex-governador do estado Wilson Witzel (PSC), afastado do cargo após um processo de impeachment. Witzel e seu adversário nas eleições de 2018, o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), protagonizam um tormentoso anexo do acordo de delação de Nythalmar. Sob o título de “interferências nas eleições de 2018”, o terceiro capítulo da colaboração premiada do advogado acusa Bretas de ter atuado deliberadamente para influenciar o resultado das eleições que alçaram Witzel ao Palácio Guanabara. Às vésperas do primeiro turno da disputa de 2018, o juiz teria vazado o depoimento de um ex-assessor de Paes, então líder nas pesquisas de intenção de voto, acusando o candidato de envolvimento em fraude de licitações e recebimento de propina. O delator informou ter ouvido do próprio Bretas a revelação de que ele nutria antipatia pelo ex-prefeito e que “foi importante que a população fluminense soubesse quem era Eduardo Paes antes da eleição”.
Ainda de acordo com o delator, em busca de um armistício, já no segundo turno, o candidato Paes teria se comprometido, caso eleito, a nomear uma irmã de Bretas para uma secretaria no futuro governo. Nesse mesmo período, Nythalmar afirma ter havido outra negociação incomum envolvendo o juiz, Eduardo Paes e Wilson Witzel. Segundo ele, após ser derrotado por Witzel, Paes fez um acordo informal com o magistrado, por meio de um advogado de sua campanha, garantindo que abandonaria a política “em troca de não ser perseguido”. Witzel, por outro lado, nomeou Marcilene Cristina Bretas, a irmã do juiz, para um cargo na Controladoria-Geral do Estado. A VEJA, o juiz Marcelo Bretas disse que não conhece o teor da delação de Nythalmar, mas afirmou que não há irregularidades no trabalho da 7ª Vara e desqualificou as acusações de que atuaria com parcialidade na condução da Lava-Jato fluminense. “A pessoa pode falar o que quiser. Já há algum tempo querem achar alguma coisa para indicar (contra mim), mas vamos esperar que alguém demonstre alguma coisa, porque falar realmente é muito fácil”, disse. O áudio, no caso, atrapalha o raciocínio do magistrado.
Aprovado pela Procuradoria-Geral da República, o acordo de delação do advogado ainda precisa ser homologado pela Justiça. Se isso acontecer — e se ele efetivamente conseguir provar todas as graves acusações que fez —, estará aberto o caminho para um segundo capítulo da Vaza-Jato. Em 2019, a partir da divulgação de diálogos captados por criminosos virtuais, a atuação da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba foi posta em xeque, manchando a credibilidade da operação e a imparcialidade do ex-juiz Sergio Moro. Com as revelações de Nythalmar, o braço carioca da operação passa a correr o mesmo risco.
Publicado em VEJA de 9 de junho de 2021, edição nº 2741
Nota de membros da extinta Lava Jato/RJ sobre falsidades de suposto colaborador
Com relação à matéria divulgada na revista Veja no dia 04/06/2021, os subscritores vêm a público rechaçar informações mentirosas referidas em suposto acordo de colaboração entre a Procuradoria Geral da República (PGR) e o advogado Nythalmar Dias Ferreira Filho, bem como esclarecer o que segue.
1. A investigação contra o advogado Nythalmar Dias Ferreira Filho pela prática de crimes de tráfico de influência e exploração de prestígio iniciou-se a partir de iniciativa da própria Forçatarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro.
2. Diversos advogados já apresentaram representações na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) acusando Nythalmar Filho de captar ilegalmente clientes com base em alegações de proximidade com juízes e membros do Ministério Público.
3. A partir de uma dessas representações, a extinta Força-Tarefa Lava Jato/RJ solicitou investigação ao Núcleo de Combate à Corrupção do MPF/RJ ainda em abril de 2019, para a devida apuração dos fatos.
4. As investigações contra Nythalmar Filho foram, então, regularmente conduzidas por outro membro do Ministério Público, não vinculado à extinta Força-Tarefa Lava Jato/RJ, em outro juízo diferente da 7ª Vara Federal Criminal-Rio, tendo culminado, ante os fartos elementos de prova quanto a prática de diversos crimes, entre eles tráfico de influência e exploração de prestígio, com a execução de medida de busca e apreensão contra o advogado Nythalmar Filho em outubro de 2020.
5. Entre os 180 acordos de colaborações firmados pela extinta força-tarefa para o aprofundamento de investigações junto à 7ª Vara Federal Criminal-Rio, apenas um foi intermediado pelo referido advogado, em contraste com a narrativa de supostos favorecimentos a seus clientes. Saliente-se que todos os acordos foram firmados dentro da legalidade, sem qualquer tipo de intervenção de qualquer magistrado na fase de tratativas. As investigações feitas pela extinta força-tarefa levaram à condenação de dezenas de pessoas e à recuperação de significativos valores, e a tentativa de impor uma narrativa distorcida, sem qualquer base nos fatos, é preocupante, merecendo a atenção da sociedade.
6. Nesse contexto fático, é surpreendente que a Procuradoria-Geral da República tenha celebrado acordo de colaboração com Nythalmar Dias Ferreira Filho, figura conhecida por distorcer a realidade de fatos para obter benefícios pessoais.
7. Convertidos de vítimas de Nythalmar Filho em ora investigados, os procuradores subscritores não tiveram acesso ao inteiro teor do suposto acordo, mas uma leitura do que foi veiculado pela revista Veja mostra que a narrativa exposta por Nythalmar Filho é confusa (confunde o nome do investigado “Paulo Preto” com “Paulo Pedro”), incongruente (afirma que os procuradores combinaram a revogação de prisão domiciliar de Adriana Ancelmo, mas recorreram) e mentirosa (investigadores teriam tentado transferir uma investigação de São Paulo para o Rio de Janeiro, quando na verdade o processo foi declinado de forma espontânea pela Justiça paulista), porém condizente com o que parece ser a forma com que conduz sua atividade profissional, moldada à base de mentiras para tentar obter benefícios pessoais.
8. Os procuradores da República subscritores nada têm a esconder, reafirmam seu atuar correto em todos os processos da extinta Lava Jato e continuarão a atuar de maneira independente no combate à corrupção, livres de pautas políticas.
Nota de esclarecimento: Associação dos Juízes Federais (Ajufe)
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) vem a público se manifestar contrariamente à matéria publicada na revista Veja, nesta sexta-feira (4/6), com acusações contra o juiz federal Marcelo Bretas, baseadas em colaboração premiada que sequer foi homologada pelo Poder Judiciário, e que consta em processo sob segredo de justiça no Supremo Tribunal Federal.
A entidade manifesta ainda sua preocupação com as sucessivas tentativas de atacar e desqualificar o trabalho que vem sendo feito por Juízes e Juízas Federais em todo Brasil contra a corrupção. A Ajufe entende, no entanto, que esse movimento vem sendo orquestrado por alguns detentores de poderes político e econômico, atingidos por investigações.
A Ajufe espera que as acusações sejam apuradas rigorosamente e que os fatos sejam esclarecidos dentro da legalidade e com total transparência. O Juiz Federal Marcelo Bretas, que é titular da 7ª vara federal do Rio de Janeiro, refuta, de forma veemente, todas as ilações e inverdades desferidas pelo advogado Nythalmar Dias Ferreira Filho contra a sua reputação.
Segue abaixo alguns esclarecimentos do magistrado:
– A reunião transcrita na matéria foi realizada após o acordo de colaboração premiada por parte do acusado defendido por Nythalmar. O advogado procurou Marcelo Bretas pedindo esclarecimentos sobre uma suposta demora na colaboração assinada por seu cliente, uma vez que seu defendido já havia
confessado, e foi feita uma chamada telefônica. O magistrado, portanto, não participou da negociação para colaboração do acusado.
– A 7a vara federal do Rio de Janeiro não tinha ciência de outras colaborações do acusado, muito menos delas participava. O advogado Nythalmar foi o único a comunicar ao juízo sobre o fechamento de um acordo de colaboração premiada. Inclusive, no que diz respeito ao interrogatório do acusado, ao magistrado não é dado conduzir o teor de seu depoimento, que deve ser prestado livremente.
– O magistrado nega veementemente a acusação de ter participado da celebração de acordo para favorecer Adriana Ancelmo ou Sérgio Cabral.
– A 7a vara federal do Rio de Janeiro nunca atuou para que a investigação sobre a Dersa fosse transferida para o estado, tendo a vara competente em São Paulo declinado da competência.
– O Magistrado esclarece ainda que o depoimento do ex-assessor de Eduardo Paes, o qual firmou acordo de colaboração premiada no âmbito do STJ, foi feito em audiência pública, designada em data anterior ao suposto vazamento apontado pelo advogado.
– Por fim, o Magistrado cita o trecho da nota divulgada pelos procuradores responsáveis pela Lava Jato que destacam ser surpreendente que “a
Procuradoria-Geral da República tenha celebrado acordo de colaboração com Nythalmar Dias Ferreira Filho, figura conhecida por distorcer a realidade de fatos para obter benefícios pessoais”.
A Ajufe permanece atenta e vigilante e vai acompanhar todos os desdobramentos do caso.