A picape avança pelas ruas do bairro João XXIII, na periferia de Fortaleza, seguida por uma longa fila de carros na noite da sexta-feira 30. Passageiros e pedestres vestem camisetas com o mesmo símbolo estampado no capô da caminhonete, o escudo do Capitão América, e seguem o cortejo aos gritos de “Vai, Capitão”. Não se trata de algum encontro de fãs do personagem da Marvel. As buzinas e os berros são dirigidos ao veículo que lidera o comboio, de onde acena Wagner Sousa Gomes, o Capitão Wagner, candidato à prefeitura pelo PROS. Aos 41 anos, o policial militar da reserva, que usa o símbolo do herói americano, tenta quebrar a hegemonia da esquerda na cidade, que não tem um prefeito de direita desde a redemocratização — o poder se alterna entre o PT e políticos ligados aos irmãos Cid e Ciro Gomes (que, num raro movimento ideológico, começou sua carreira política na direita, mas virou de esquerda com a idade). Identificado com o bolsonarismo, e com apoio velado de Jair Bolsonaro, ele trava uma luta parelha com José Sarto (PDT), apoiado pelos Gomes, e a ex-prefeita Luizianne Lins (PT), bancada por Lula — segundo a última pesquisa do Ibope, os três estão empatados tecnicamente.
O nome da direita chega com credenciais construídas em uma trajetória meteórica impulsionada pela greve de PMs que liderou entre o fim de 2011 e o início de 2012. Um ano antes, ele havia fracassado ao tentar se eleger deputado estadual. Nos pleitos seguintes, empilhou vitórias como vereador, deputado estadual e federal, sempre eleito como o campeão de votos na disputa. Em 2016, chegou ao segundo turno na disputa pela prefeitura, mas perdeu para Roberto Cláudio (PDT). Quatro anos depois, ele faz nova tentativa, com um discurso para além da segurança — a sua vice, a advogada Kamila Cardoso (Podemos), por exemplo, milita na área de direitos humanos e de pessoas com deficiência. “Wagner tem tentado ampliar a pauta, para não ficar monotemático”, diz Monalisa Torres, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia da Universidade Federal do Ceará.
Mas foi com o discurso voltado à segurança, à ordem pública e à família que ele atraiu grupos ligados à pauta conservadora, como lideranças evangélicas. “Ele se posicionou a favor da vida, da família e dos valores cristãos”, afirmou o deputado estadual Apóstolo Luiz Henrique, fundador da Igreja do Senhor Jesus, que é do PP, partido que apoia Sarto. Embora seja bem-visto nos templos e vá a cultos, Wagner não se considera evangélico, mas um “cristão”. A mesma retórica acabou por ligá-lo a Bolsonaro, de quem foi cabo eleitoral em 2018. O presidente já disse, sem citá-lo, que Wagner, “se Deus quiser, vai dar certo”. Dada a impopularidade do presidente na cidade, o capitão cearense mantém uma distância calculada do capitão do Planalto — diz ter boa relação, mas pondera que sempre votou com independência como deputado federal. “O prefeito não pode ser inimigo de Brasília”, desconversa. Além dessa proximidade, outro ponto explorado pelos adversários é a sua participação nos motins. Embora reconheça ser o líder da greve de 2012, que teve algum apoio popular, ele nega ter articulado o movimento deste ano, que parou a polícia por treze dias.
Quem vocaliza os principais ataques a ele é o governador Camilo Santana (PT). Cabo eleitoral popular, ele se absteve no primeiro turno para não melindrar nem os irmãos Gomes, de quem é aliado, nem o PT. Com a ascensão do Capitão América, o que se vê agora é uma batalha fratricida à esquerda. “A artilharia dos Ferreira Gomes contra mim é porque julgam que é mais fácil derrotar Wagner no segundo turno”, avalia Luizianne, que classifica como fake news o recente encontro entre Lula e Ciro em São Paulo, que teria selado uma reaproximação entre PT e PDT, estremecida desde 2018. Embora o rosto de Camilo estampe materiais da petista, o pai do governador, Eudoro Santana, coordena o programa de Sarto. “Precisa ter mais cuidado, porque tem segundo turno”, afirma Eudoro sobre os ataques na esquerda.
O fato é que há muito em jogo na disputa: além da hegemonia esquerdista, há a necessidade do PT de voltar a governar capitais — hoje não administra nenhuma — e a de Ciro de tentar manter o seu reduto. Com padrinhos ocultos ou escancarados, a disputa de Fortaleza se tornou uma espécie de ensaio geral para 2022.
Publicado em VEJA de 11 de novembro de 2020, edição nº 2712