Durante um período, a Operação Lava-Jato simbolizou a supremacia da Justiça sobre a histórica impunidade dos chamados criminosos de colarinho-branco. Uma mistura de messianismo com falhas de procedimentos, politização de certas decisões e erros processuais, no entanto, colocou praticamente tudo a perder. Dos cerca de 300 condenados por corrupção e desvios de bilhões de reais dos cofres públicos, restou um único preso — e mesmo assim, quando esta reportagem for publicada, ele pode já ter sido solto. O ex-governador Sérgio Cabral foi detido preventivamente há seis anos por determinação do ex-juiz Sergio Moro. Até a última quinta-feira, no fechamento desta edição, quatro dos cinco ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal já haviam votado na ação que pede a anulação do decreto de prisão. Falta um voto para consolidar a maioria a favor da libertação do ex-governador, sentenciado a mais de 420 anos de cadeia por corrupção, lavagem de dinheiro, organização criminosa, evasão de divisas, crimes contra o sistema financeiro, fraude em licitação e formação de cartel. Esse poderia ser o derradeiro episódio de um enredo judicial marcado pela reviravolta. O caso, porém, promete outra surpresa.
VEJA teve acesso a detalhes de uma operação sigilosa que pode resultar no afastamento do último dos juízes da Lava-Jato ainda em atividade, Marcelo Bretas, titular da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, responsável pelas investigações do braço fluminense do escândalo da Petrobras e por decisões que levaram à prisão (equivocada) do ex-presidente Michel Temer, de toda a antiga cúpula do governo do Rio e de empresários do calibre de Eike Batista, o ex-bilionário que já foi um dos homens mais ricos do país. O magistrado é acusado de executar ações ilegais em conluio com advogados e investigadores para incriminar determinadas autoridades. No mês passado, uma equipe destacada pela corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez uma “correição” no gabinete de Bretas — em tese, um procedimento protocolar. Não era. Os técnicos buscavam provas que sustentassem uma denúncia que, se comprovada, além de comprometer a carreira do juiz, podem colocar abaixo dezenas de sentenças proferidas por ele ao longo dos últimos seis anos de Lava-Jato. A suspeita é que Bretas, entre outras ilegalidades, autorizaria informalmente a quebra de sigilos telefônico e fiscal de investigados.
A nova ofensiva contra o juiz ganhou consistência jurídica a partir de uma decisão do decano do Supremo, Gilmar Mendes, que, em um despacho classificado como confidencial, assinado no dia 27 de setembro, encaminhou ao CNJ a delação premiada do advogado José Antonio Fichtner, que acusou Bretas e o advogado Nythalmar Dias Ferreira Filho de acessarem ilegalmente seus dados protegidos por sigilo, incluindo saldos de contas bancárias e investimentos financeiros dele e da família. O delator fechou um acordo de colaboração para se livrar da cadeia, incriminou o próprio irmão, o ex-secretário da Casa Civil de Cabral, Régis Fichtner, e confessor ter se apropriado de sobras de campanha do ex-governador Sérgio Cabral, de quem Régis era braço direito. Na delação, Fichtner contou também que Nythalmar tinha acesso privilegiado ao juiz, sabia das decisões que seriam tomadas e usava essas informações para conquistar clientes que lhe pagavam gordos honorários. Com esse material enviado por Mendes em mãos, o corregedor nacional, ministro Luis Felipe Salomão, a quem cabe conduzir investigações contra juízes, determinou que uma equipe de sete funcionários de sua confiança fizesse a intervenção na vara de Bretas.
Uma reportagem de VEJA publicada em junho do ano passado revelou que o próprio Nythalmar fechou um acordo de delação premiada com o Ministério Público e empurrou Marcelo Bretas para o centro de uma trama que também envolveria a negociação de penas com autoridades arroladas nos processos, combinação prévia de estratégias de investigação com os procuradores, o que é irregular, e até atuação direta para influenciar as eleições de 2018 ao governo do Estado e beneficiar Wilson Witzel, o vencedor. No dia 9 do mês passado, um grupo de quinze policiais federais, servidores do Judiciário e dois desembargadores — um de São Paulo e uma do Distrito Federal — foram até o gabinete de Marcelo Bretas. Eles tinham ordens para arrombar a porta, trancada à chave no momento da batida, e recolher computadores e documentos que pudessem indicar a existência de investigações paralelas.
O terminal que o juiz usava para armazenar processos e redigir sentenças, por exemplo, teve o conteúdo copiado e enviado à corregedoria. Na mesma incursão, foram ouvidas quatro pessoas — o diretor administrativo da vara, uma juíza que tomou decisões relacionadas a Bretas e Nythalmar e dois advogados que conhecem como poucos a relação entre os dois personagens. Também convocado a prestar esclarecimentos, Nythalmar permaneceu em silêncio. O material apreendido no gabinete ainda está sendo inventariado, mas as primeiras conclusões da correição reforçaram as suspeitas. Procurado, Bretas não quis se manifestar. O relatório parcial feito pela equipe de correição, a que VEJA teve acesso, sugere que o magistrado tinha aliados dentro do setor de perícia da Polícia Federal do Rio que atuariam, por exemplo, para atrasar deliberadamente a análise de documentos que pudessem, de algum modo, respingar nele. Os técnicos citam a demora da PF em analisar dois celulares e um notebook de Nythalmar, que foram apreendidos em uma busca autorizada pela Justiça. O episódio é emblemático porque o próprio advogado disse que os documentos armazenados nos seus aparelhos provariam as acusações contra o juiz.
Com base no material recolhido no gabinete de Bretas, no domingo 11, a Corregedoria Nacional de Justiça determinou a instauração de uma reclamação disciplinar contra o juiz, pediu acesso a outras duas delações, de Nythalmar e do ex-secretário de Saúde do Rio Sérgio Côrtes, que também acusou o magistrado de cometer ilegalidades na Lava-Jato, e abriu prazo para que ele apresente sua defesa. As decisões pavimentam o caminho para que o CNJ leve o destino do juiz da Lava-Jato a julgamento na primeira sessão do próximo ano, em 14 de fevereiro. O desfecho previsto é um só: retirar do cargo aquele que, suspeita-se, replicou no Rio as ações heterodoxas da Lava-Jato de Sergio Moro e dos procuradores de Curitiba, que levaram o Supremo a anular processos conduzidos pelo ex-juiz, inclusive o que resultou na condenação do agora presidente eleito Lula. Por enquanto, é bom que se ressalte, as acusações contra o magistrado carioca se limitam a suspeitas. Mas os indícios de exageros cometidos são muitos.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820