A rede de apoiadores radicais ajudou a deflagrar a onda do bolsonarismo nas últimas eleições e, na chegada do capitão ao poder, tem sido importante para manter acesa a chama da militância nas ruas e na internet, com a tática de acuar os rivais à base de golpes digitais abaixo da linha da cintura. Sua ferramenta mais conhecida é o uso de fake news, rapidamente espalhadas pelas redes sociais com a ajuda de “robôs”, como são conhecidos os perfis postiços. Embora tenham sido muito úteis até agora, esses soldados se tornaram uma dor de cabeça ao Palácio do Planalto por serem os principais alvos de dois inquéritos em curso no STF relacionados à disseminação de notícias falsas e à organização de atos antidemocráticos. Conforme revelou a coluna Radar, de VEJA, as investigações já identificaram digitais de um dos filhos do presidente, Carlos Bolsonaro, no chamado “gabinete do ódio”, um grupo que usaria as dependências do Palácio do Planalto para promover campanhas virtuais contra adversários do governo.
O lance mais recente do cerco liderado pelo STF ocorreu na terça-feira 16, quando policiais federais bateram à porta de 21 endereços de nomes influentes e de ilustres desconhecidos do universo de redes sociais que mantêm viva a militância de Bolsonaro. A ação, a mando do ministro Alexandre de Moraes e a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, tem um objetivo: achar o caminho do dinheiro que financia atos com pedidos de fechamento do Congresso e do STF e defesa da intervenção militar e da ditadura. A busca por provas nos imóveis dos suspeitos desencadeada por essa investigação atingiu um deputado aliado, Daniel Silveira (PSL-RJ), e duas figuras importantes na estruturação do Aliança pelo Brasil, o partido que o bolsonarismo pretende criar: o marqueteiro Sérgio Lima e o advogado Luís Felipe Belmonte — este, o número 2 na sigla, abaixo apenas do próprio Bolsonaro, que é o presidente. Além disso, Moraes quebrou o sigilo bancário e fiscal de dez deputados e um senador governistas — um dos objetivos é apurar se dinheiro público, como o da cota parlamentar, é usado para financiar perfis agressivos na internet.
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Clique e AssineA investigação começou a jogar luz sobre nomes ainda pouco conhecidos, mas importantes no esquema. Um deles é Ernani Fernandes Barbosa Neto, um dos pioneiros na criação de sites de notícias falsas no Brasil, que trabalha com esse tipo de conteúdo desde 2013. Ao lado da mulher, Thais Raposo do Amaral Pinto Chaves, ele conseguiu um contrato com o então deputado federal Delegado Francischini (PSL-PR), entre 2017 e 2018, que lhe rendeu 24 000 reais provenientes da cota parlamentar com o objetivo de atualizar as redes sociais do político. A suspeita, na época, era de que o dinheiro havia sido destinado a páginas de fake news do casal, já que o Folha Política, o principal site criado pela dupla, publicou diversos textos elogiosos ao ex-parlamentar. Francischini não está entre os alvos desta operação, mas os investigadores acreditam que a fórmula pode estar sendo replicada nos gabinetes de parlamentares fiéis ao bolsonarismo em Brasília. O marqueteiro Sérgio Lima, por exemplo, alterou a razão social de uma empresa de cosméticos em fevereiro deste ano para prestar serviços de publicidade a quatro deputados do PSL, todos com sigilos quebrados por Moraes na terça-feira. Bia Kicis (DF) e Aline Sleutjes (SC) firmaram um contrato cada uma, que, somados, totalizaram pouco mais de 16 000 reais. Guiga Peixoto (SP) e General Girão (RN) têm um acordo pelo qual pagam a Lima 6 500 e 7 400 reais mensais, respectivamente.
Muitos youtubers ligados à rede receberam também a visita da PF e tiveram celulares e computadores apreendidos. Afora isso, Moraes pediu às empresas YouTube, Facebook e Instagram o relatório de monetização dos perfis ligados a esses “soldados rasos” da internet bolsonarista com a intenção de saber se há um volume desproporcional de dinheiro e até mesmo esquemas de fraudes, como o uso de CPFs falsos para anabolizar as interações, que servem de base para a remuneração pelo conteúdo. Além de habitués nos protestos antidemocráticos e no cercadinho do Palácio da Alvorada, já se sabe que Bolsonaro recebeu alguns desses youtubers investigados em encontros oficiais no Palácio do Planalto. “Querem tirar a mídia que eu tenho a meu favor sob o argumento mentiroso de fake news”, disse o presidente após aliados terem sido alvo de outra operação realizada no final de maio.
A dor de cabeça de Bolsonaro com os avanços das investigações no STF não é nova. Às vésperas da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, em abril, quando o presidente insistia na substituição do então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, Bolsonaro mandou ao ex-juiz uma notícia que informava que a corporação tinha “dez ou doze deputados bolsonaristas” na mira, acompanhada de uma mensagem sua: “Mais um motivo para a troca”. Além da ofensiva contra os parlamentares e influencers nas redes sociais, há uma incerteza no Planalto, misturada a uma forte desconfiança, sobre o que poderá sair da quebra dos sigilos de empresários suspeitos de financiar a propagação de conteúdo falso. Entre os atingidos pela medida estão, por exemplo, Luciano Hang, da Havan, e Edgard Corona, da Smart Fit. O primeiro, que também foi investigado na campanha de 2018, já tratou de negar qualquer possibilidade de ter financiado o grupo da extremista de direita Sara Winter — presa na segunda-feira 15 pela PF — após a suspeita de que os manifestantes usavam modelos de barracas iguais aos vendidos em suas lojas de departamentos.
A análise em curso do material coletado e o saldo das quebras de sigilos bancário e fiscal ordenados pelas autoridades são capazes de revelar como essa rede do ódio é coordenada e quais são as suas principais fontes de financiamento. Em última instância, seriam capazes de comprovar uma antiga suspeita: a de que a campanha de Bolsonaro em 2018 recebeu recursos ilegais para alimentar essa rede digital. Caso seja confirmada essa hipótese (e há ainda um longo e acidentado caminho para isso), a chapa Bolsonaro-Mourão correria o risco de ser cassada pelo Tribunal Superior Eleitoral.
O estrago mais imediato das ações é da ordem política para o governo. Acossado pelos inquéritos no STF e pelos mais de trinta pedidos de impeachment que estão no Congresso, Bolsonaro tem feito movimentos em direção ao pragmatismo. Cedeu ao que chamava de “velha política” ao negociar cargos com o Centrão em troca de apoio no Legislativo e de alguma governabilidade. Além disso, fez acenos ao Judiciário e teve até uma conversa reservada com Moraes. Na quarta-feira 17, após um longo silêncio em relação às operações da PF, ele ensaiou um afago aos seus apoiadores, dizendo ter visto “abusos” na ação, mas ressaltou: “Estou fazendo exatamente o que tem de ser feito. Não serei o primeiro a chutar o pau da barraca”. A postura do presidente, no entanto, desagrada à turma mais barulhenta do bolsonarismo. Ministros de áreas técnicas e jurídicas, como André Mendonça, da Justiça, e Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral da Presidência, têm sofrido ataques virtuais por dialogar com o Judiciário ou por criticar ataques às instituições.
Na visão tresloucada dos radicais que se encontram agora na mira da Justiça, o governo, incluindo os militares, tinha de esticar a corda e romper de uma vez com os demais poderes. O empresário Otávio Fakhoury, outro investigado como suposto financiador de atos antidemocráticos e sites de fake news, tem dito a pessoas próximas que pode se voltar contra o governo caso seja abandonado pelo caminho. O presidente agora se vê diante de uma sinuca de bico: enquanto busca alguma moderação — já chegou a pedir aos manifestantes a seu favor que não fossem às ruas —, é pressionado a partir para o confronto institucional por um grupo radicalizado que está cada vez mais encurralado pela polícia e pela Justiça. E tudo isso em meio à incógnita sobre o que virá após a devassa em andamento, capaz de deixar o governo e as hostes bolsonaristas à beira de um ataque de nervos.
Colaborou André Siqueira
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692