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Com base frágil no Congresso, Lula acena a governadores para ampliar apoio

À frente de um país dividido, o presidente inclui na lista alguns rivais eleitorais

Por Laísa Dall'Agnol Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Diogo Magri Atualizado em 4 jun 2024, 10h44 - Publicado em 11 fev 2023, 08h00

Na virada do século XIX para o XX, a recém-proclamada República vivia uma transição dos militares, que governaram o país nos primeiros anos, para os civis, cujo primeiro representante seria Prudente de Moraes. Coube ao seu sucessor, Campos Salles, a missão de institucionalizar a relação entre o governo federal e os poderes locais, em um país de dimensões continentais e porções do território geridas de forma autônoma por aristocratas regionais, no sistema que ficou conhecido como coronelismo. Salles criou, então, a “política dos governadores”, em que o presidente apoiava os chefes estaduais em troca de apoio à sua gestão. Mais de 100 anos depois, em que pesem as ressalvas (o Estado é incomparavelmente mais amplo e forte e existe pluralidade partidária), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenta atualizar a forma de tocar o país ao lado dos governadores. A iniciativa, mais do que uma tentativa de reconstruir a harmonia na federação — estilhaçada pela animosidade que marcou os tempos de Jair Bolsonaro —, visa a ampliar a sustentação política do governo central, como ocorreu na República Velha, e manter a maior proximidade possível com potenciais adversários políticos — e eleitorais.

O último gesto de Lula nessa direção não poderia ser mais explícito. Na primeira visita a um estado, foi ao Rio de Janeiro, berço eleitoral de Bolsonaro governado por Cláudio Castro (PL), do partido do ex-presidente. Na ocasião, ambos trocaram sorrisos e conversas ao pé do ouvido, além de promessas de trabalho conjunto durante os discursos. “O que importa é que temos maturidade, presidente Lula, pois juntos temos a missão de trabalhar para esse povo”, disse Castro. Lula devolveu a gentileza prometendo mais investimentos. Nos bastidores, o petista estimula emissários a tentar levar o governador para um partido da base, como União Brasil e PSD — o prefeito Eduardo Paes, do PSD, aliás, foi o responsável por unir os dois no evento.

MENSAGEM CERTA - Haddad com governadores: o ministro agradou ao prometer recompor perdas de receita dos estados -
MENSAGEM CERTA - Haddad com governadores: o ministro agradou ao prometer recompor perdas de receita dos estados – (Washington Costa/MIN. FAZENDA/.)

O aceno de Lula aos governadores já vinha sendo feito desde a campanha, mas ganhou força após a intentona golpista de 8 de janeiro. No dia seguinte, os 27 chefes estaduais foram ao encontro do petista para defender as instituições da República. Duas semanas depois, voltaram a se encontrar na capital federal para lançar a Carta de Brasília, na qual reafirmaram o compromisso com a democracia, mas também lançaram o compromisso de pactuarem parcerias concretas e criaram o Conselho da Federação, uma entidade que terá Lula, o vice, Geraldo Alckmin, ministros, governadores e prefeitos e que vai organizar uma agenda prioritária de obras e parcerias. Lula ainda anunciou reuniões bimestrais com governadores.

Do encontro saltaram de imediato duas frentes de ação. Uma delas é retomar as mais de 10 000 obras que estão paradas e dar andamento às prioridades definidas pelos governadores. Há demandas como as privatizações do Porto de Santos e do metrô de Belo Horizonte, levadas pelos governadores Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Romeu Zema (Novo), o destravamento da implantação do Ferrogrão, proposto por Mauro Mendes (União Brasil), de Mato Grosso, e projetos de investimento na Amazônia, entre eles um plano integrado de desenvolvimento sustentável, apresentado por Helder Barbalho (MDB), do Pará.

FÓRUM - Lula com governadores: em menos de um mês, dois encontros com os chefes dos Executivos estaduais -
FÓRUM - Lula com governadores: em menos de um mês, dois encontros com os chefes dos Executivos estaduais – (Ricardo Stuckert/PR)

Outra urgência levada pelos governadores foram as perdas com o ICMS, principal fonte de receita dos estados, em razão do teto implantado no governo anterior para conter a alta dos combustíveis. Na terça 7, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reuniu parte dos governadores e acenou com a possibilidade de uma compensação aos estados — no dia seguinte, técnicos da pasta anunciaram o tamanho da bondade: 22 bilhões de reais. O pacote ainda inclui a possibilidade de rediscutir o próprio teto e o abatimento de dívidas com a União.

A aproximação de Lula embute dois cálculos políticos. O primeiro é manter boas relações com nomes que estariam na oposição, como os comandantes dos três maiores colégios eleitorais (Tarcísio, Zema e Castro), que apoiaram Bolsonaro. O governador de São Paulo, que tem tudo para herdar grande parte do eleitorado do ex-presidente, já se encontrou três vezes com Lula. Para arrepio dos bolsonaristas, disse que ele e o petista são parceiros. “Para São Paulo ir bem, o Brasil tem de ir bem. Então, eu e o presidente Lula, agora, somos sócios”, afirmou. Em encontro com o presidente, Tarcísio apresentou a fatura: além da concessão do Porto de Santos, obras como o Túnel Santos-Guarujá, investimentos em trens e metrôs, renegociação de dívidas de hospitais com bancos federais e mais verbas para a saúde. Com Zema, a relação é um pouco diferente. Embora também tenha ido a encontros com Lula e apresentado as suas demandas, o mineiro tem feito críticas pontuais ao petista — como as ressalvas ao aumento dos gastos públicos e a insinuação de que o presidente fez vista grossa nos atos terroristas em Brasília. O objetivo é marcar as diferenças e ser uma alternativa ao petismo no pleito presidencial de 2026. Diferentemente de Tarcísio, Zema não pode mais disputar a reeleição estadual. Ainda assim, elogia a aproximação com Lula. “Posso afirmar que hoje temos a melhor relação possível”, diz.

SELF-SERVICE - Tarcísio: privatização, obras e dívidas no cardápio com Lula -
SELF-SERVICE - Tarcísio: privatização, obras e dívidas no cardápio com Lula – (Ciete Silvério/Governo do Estado de SP/.)

É claro que a atual estratégia de boa vizinhança lá na frente vai inevitavelmente ceder espaço ao tiroteio entre o governo federal e os chefes dos Executivos estaduais que tentarem ocupar os palanques da oposição em 2026, mas Lula tem como objetivo de curto prazo ganhar musculatura para aprovar os seus projetos no Congresso, onde os governadores têm grande influência. O presidente, como se sabe, está à frente de um país dividido e, nesse cenário, melhor fazer amigos do que inimigos na política, aplainando o espinhoso terreno institucional. “O caminho de cooperação entre os poderes é positivo para todos”, projeta Fernando Abrucio, cientista político da FGV e autor do livro Os Barões da Federação, que estuda a ascensão dos governadores no cenário político nacional após as eleições de 1982.

A aproximação administrativa também cria condições para um ambiente menos extremado para a próxima disputa nacional. “Pode levar a uma eleição em 2026 na qual, ao invés de discutirmos se a democracia continuará ou não, poderemos debater políticas econômicas e visões de mundo aceitáveis”, indica Abrucio. Outro ganho de imediato para Lula na estratégia do discurso dos “bons companheiros” é dividir o ônus político de ações adotadas. “Ele prefere dividir a responsabilidade de medidas impopulares com governadores, prefeitos e outros poderes, enquanto Bolsonaro transferia integralmente o custo”, diz Marta Arretche, cientista política e professora da USP.

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FREIA E ACELERA - O mineiro Zema: elogio e críticas para marcar diferenças -
FREIA E ACELERA - O mineiro Zema: elogio e críticas para marcar diferenças – (Cristiano Machado/Imprensa MG/.)

A relação entre Lula e os demais caciques da federação tem, no entanto, imensos desafios pelo caminho. Além das divergências políticas, que se acirram à medida que se aproximam as eleições, há a possibilidade de temas espinhosos na pauta, como a reforma tributária. As propostas em discussão acabam com tributos como ICMS, IPI e ISS e criam um imposto unificado, mas as alíquotas cobradas e a divisão do dinheiro podem gerar um cabo de guerra entre a União e os estados. Na quarta 8, o secretário extraordinário da Reforma Tributária da Fazenda, Bernard Appy, defendeu a reforma tributária como uma maneira de reduzir a desigualdade na receita federativa. Bonito, na teoria. Na prática, existe a dificuldade de uma composição satisfatória para todos. “É sempre difícil fazer reforma em um contexto em que você precisa de dinheiro. Tanto a União quanto estados e municípios terão um 2023 pior do que foi 2022”, afirma Felipe Salto, ex-­secretário da Fazenda de São Paulo e hoje economista-chefe da Warren Renascença.

Independentemente desse e de outros desafios, a recuperação de alguma institucionalidade na condução do país era mais do que necessária, e a postura de Lula e dos governadores mostra uma civilidade que não se via fazia algum tempo. “É bom que tenhamos essa retomada do diálogo, dentro de um movimento no sentido de recuperar as relações republicanas”, elogia Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul, ele também um personagem com aspirações nacionais. O importante agora é separar o que é interesse genuíno da nação dos óbvios interesses políticos e eleitorais que estarão em jogo nessa nova dança ensaiada pelos caciques da federação.

Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828

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