As estratégias de Lula para tentar vencer a eleição no primeiro turno
Petista quer ampliar arco de alianças, fazer críticas contundentes ao presidente e ter apoio em peso de artistas e de parte da sociedade. Não será fácil
A poucos dias da eleição, entre milhares de outras preocupações políticas, o candidato na dianteira da corrida ao Palácio do Planalto enfrenta um dilema pessoal: Luiz Inácio Lula da Silva precisa urgentemente descansar a voz. Problema antigo, mas agravado na época do bem-sucedido combate a um câncer de garganta, em 2011, a rouquidão deu as caras nos últimos meses com força total, fruto das agendas pesadas de campanha. Apesar do problema, não existe a menor chance de o petista poupar as desgastadas cordas vocais, pois é o momento em que ele precisa mais falar, de forma a manter o favoritismo que voltou a embalar os sonhos de uma vitória em primeiro turno — muito difícil, mas não totalmente improvável.
Para se ter uma ideia do tamanho do desafio, desde a redemocratização, só duas vezes um candidato levou em primeiro turno (FHC em 1994 e 1998). Lula, mesmo com popularidade altíssima em 2006, não conseguiu esse feito. Por isso mesmo, sempre que pode, ele faz ao seu entorno a pregação das sandálias da humildade. “Sola de sapato”, costuma repetir, indicando que ninguém pode relaxar na campanha. Ao mesmo tempo, no entanto, deu o sinal verde para o PT iniciar com força a caça ao Santo Graal em 2 de outubro. O movimento ocorre num crescendo, tendo Lula como principal garoto-propaganda: “De todas as eleições que eu participei, nunca tivemos a chance de resolver no primeiro turno como temos nessas eleições”, disse.
A análise do ex-presidente encontra respaldo nos movimentos detectados pelas últimas sondagens eleitorais. No levantamento Ipec divulgado na segunda 19, ele aparece com 52% dos votos válidos, porcentual que, em tese, seria suficiente para liquidar a corrida. O problema: como a margem de erro é de 2 pontos porcentuais para mais ou para menos, não é possível cravar com segurança que isso ocorrerá, caso o cenário se confirme. Além disso, outros institutos deram na mesma semana um porcentual menor, como a Quaest, que apontou na quarta 21 que o ex-presidente teria 48,9% dos votos válidos. Por outro lado, o mesmo levantamento mostrou que 26% dos entrevistados que não declaram preferência por Lula afirmaram que podem mudar o voto se isso for necessário para o petista vencer já no primeiro turno.
Criada para pegar o vácuo das pesquisas recentes, a estratégia petista declarada de tentar antecipar o triunfo se desdobra em várias frentes. Nas articulações políticas, Lula tem contado com o apoio discreto — mas eficiente — do vice Geraldo Alckmin (PSB) junto a setores ainda refratários à candidatura. Embora o ex-tucano participe ativamente de eventos públicos ao lado de Lula, seu papel na campanha tem se concentrado fora dos holofotes. Sobretudo na reta final da campanha, teve encontros individuais e recorrentes com representantes do empresariado e da indústria de diversos estados, como São Paulo, Minas Gerais, Rondônia e Goiás — esses últimos, fortes redutos bolsonaristas —, e da saúde — principalmente administradores de Santas Casas — utilizando de seu currículo de médico e experiência como gestor.
O legado de Alckmin como o mais longevo governador de São Paulo, inclusive, tem sido peça central para dialogar com lideranças do estado que é o maior colégio eleitoral do país. São ao menos três reuniões por dia com prefeitos do imenso e populoso interior paulista — a região tradicionalmente não vota no PT, mas vê no “doutor Geraldo” uma figura de “previsibilidade, credibilidade e estabilidade”, como o ex-governador tem repetido publicamente à exaustão. O posto de “fiador” do ex-tucano tem contribuído, ainda, para o embarque de nomes de centro-direita no projeto-Lula: os mais recentes foram os do ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles (União Brasil) e do ex-prefeito do Rio Cesar Maia (PSDB).
Embora perdurem internamente no PT as queixas de falta de dinheiro para a mobilização de campanha de rua, o partido tem focado, ainda, em grandes eventos junto à militância. A coordenação de Lula viu com otimismo o resultado de atos recentes e reservou os últimos dias antes do primeiro turno para intensificar ainda mais as visitas no Sudeste. O roteiro inclui uma visita a Ipatinga, no Vale do Aço mineiro — Minas é o segundo maior estado em número de eleitores e, em algumas regiões, vê estreita a margem entre Lula e Bolsonaro —, um ato no Rio de Janeiro ao lado de Eduardo Paes (PSD) e uma visita à Bahia, onde o objetivo será também estimular a candidatura de Jerônimo Rodrigues (PT) ao governo estadual. Num estado em que quase 60% da população é negra, a ideia é explorar os deslizes do adversário ACM Neto (União), que recentemente declarou se enxergar como uma pessoa “parda”. “A Bahia não perdoa”, diz um petista da coordenação de Lula. A despeito do escorregão, ACM Neto ainda lidera com folga a corrida. Fora essas viagens, até 2 de outubro o “foco total” será São Paulo. Está prevista uma espécie de “show-comício” com personalidades no dia 26 em formato híbrido. Entre os dias 30 de setembro e 1º de outubro, a campanha estuda, ainda, um grande ato de rua, também na capital paulista.
Na frente de comunicação, o foco é bater na tecla da comparação entre Lula e Bolsonaro (numa dualidade entre bom e ruim, o propositivo e o caótico), sendo que a estratégia é dividida em duas. A primeira é a mais aparente e está sendo praticada na propaganda eleitoral do petista — as peças publicitárias têm subido o tom contra Bolsonaro ao compilar uma série de declarações do atual presidente zombando da pandemia, agredindo mulheres e fazendo pouco caso da economia e da camada pobre ao dizer que não existe fome no Brasil. Simultaneamente, as inserções também têm reunido manifestações de diversos atores e cantores a favor da candidatura de Lula. A tática de mobilizar a classe artística não é novidade — o que é novo é que esse apoio, outrora voltado ao “13” e ao “PT”, agora ganhou outros ares e tem como objetivo extirpar Bolsonaro do poder já no primeiro turno. Em meio à sociedade civil, o Prerrogativas, grupo de advogados pró-Lula que praticamente lançou a candidatura num jantar em homenagem ao ex-presidente em São Paulo no ano passado, tem articulado fortemente nos bastidores. Uma das prioridades de suas lideranças, entre elas, o advogado Marco Aurélio de Carvalho, envolve relembrar extensivamente em artigos os argumentos que possibilitaram a “inocência” de Lula. Na quinta 22, o Prerrogativas colocou no ar uma campanha própria pelo voto útil, com endosso de personalidades como Miguel Reale Jr., ministro da Justiça do governo de Fernando Henrique Cardoso e um dos autores da peça de impeachment de Dilma Rousseff.
Na tentativa de arrancada final para chegar ao número mágico acima de 50% dos votos válidos, todas essas frentes de campanha têm como objetivo tirar em torno de 3 pontos porcentuais dos adversários. Em outros termos, isso implica mudar a opinião de pouco menos de 5 milhões de eleitores não convictos, principalmente os da terceira via. Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB), seus principais alvos, possuem metade de adeptos dispostos a virar a casaca. Não é uma tarefa fácil, mas uma análise das sondagens recentes indica que pode ter se iniciado um movimento nessa direção. Excluindo Jair Bolsonaro (PL), os outros candidatos alcançam, juntos, pela última pesquisa FSB/BTG, 14% das intenções de voto, 5 pontos porcentuais a menos do que o verificado uma semana antes. “São indícios de movimentos de voto útil”, afirma Marcelo Tokarski, sócio-diretor do Instituto FSB Pesquisa.
Por estar em terceiro lugar, Ciro Gomes é naturalmente a principal vítima da campanha. Pesquisa Quaest mostrou que um terço de seus eleitores votaria em Lula para que o petista liquidasse a disputa no primeiro turno. Aliados do cearense têm classificado a ofensiva lulista como “absurda”. “É um atentado à democracia, uma violência política”, diz Ana Paula Matos, a vice de Ciro. Diante do risco de um esvaziamento ainda maior de sua campanha, o pedetista e seu estrategista de comunicação, João Santana, declararam guerra. Vídeos e postagens da campanha do candidato criticam abertamente o ataque. Nesse contexto, o mote de um “verdadeiro voto útil” em Ciro passou a circular em suas redes sociais, enquanto uma das peças chega a questionar o eleitor sobre como reagiria caso alguém lhe pedisse para abandonar sua fé, sua família e seu time de futebol em nome de motivos questionáveis. A reação não impediu Ciro de sofrer defecções em sua base. Dois membros do diretório nacional do PDT, os ex-deputados Cidinha Campos (RJ) e Haroldo Ferreira (PR), declararam voto em Lula. Na classe artística, dois dos apoiadores mais notórios, os cantores Caetano Veloso e Tico Santa Cruz, também anunciaram que optarão pelo ex-presidente, enquanto um movimento de militantes brizolistas pregou “voto consciente” em Lula.
Outro alvo do ataque especulativo, Simone Tebet tem repetido que essa estratégia do adversário é desrespeitosa com os eleitores. Dono da vaga de vice na chapa de Tebet (ocupada pela senadora Mara Gabrilli), o PSDB também entrou na mira da expansão petista. Emissários de Lula sondaram apoios de “tucanos históricos”, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o senador José Serra (SP), mas eles não vão declarar voto no petista no primeiro turno. Por outro lado, o cordão tucano pró-Lula recebeu algum reforço nesta semana. Uma ala do PSDB de Goiás aproveitou passagem de Geraldo Alckmin pelo estado para declarar apoio a Lula. Entre os articuladores do movimento estão o ex-deputado federal Giuseppe Vecci, que integra a Executiva Nacional do PSDB como tesoureiro adjunto, e o ex-governador de Goiás José Eliton, que trocou o ninho tucano pelo PSB neste ano. Outro nome de peso do PSDB a ter declarado apoio a Lula foi o do ex-ministro e ex-senador Aloysio Nunes Ferreira. “É importante derrotar Bolsonaro em defesa da democracia, dar a ele uma surra já no primeiro turno”, diz Nunes. É provável também que, em breve, José Gregori, ministro da Justiça no governo FHC entre 2000 e 2001, faça o mesmo. Diretor-geral da Fundação FHC, o cientista político Sergio Fausto já disse que votará em Lula. FHC, aliás, depois de procurado pela campanha de Lula, emitiu na quinta 22 uma nota de recomendação de voto, mas sem mencionar qualquer candidato, na qual pede que os eleitores votem em 2 de outubro em quem tem compromisso com a democracia, entre outros pré-requisitos. Mesmo sem a menção a Lula, o posicionamento de FHC foi computado como uma vitória pela campanha petista.
Ao mesmo tempo em que lidera e estimula esses movimentos, Lula precisa ultrapassar os obstáculos e reduzir as derrapagens de sua campanha. O primeiro ponto a ser superado é o risco de abstenções não só nas franjas das metrópoles e nas regiões metropolitanas, onde o PT transita historicamente bem, mas também no eleitorado de classes mais baixas nos grotões nordestinos. No primeiro turno de 2018, quase 30 milhões de eleitores não compareceram às urnas. “Vamos reforçar nas redes e na TV, inclusive com exemplos, a importância de as pessoas irem votar”, afirma o ex-ministro Alexandre Padilha e um dos principais homens da campanha de Lula. Além de se preocupar com os faltosos, o ex-presidente precisa se esquivar dos crescentes ataques promovidos por Bolsonaro, que já o chamou “ladrão” e “quadrilheiro”. Por fim, o petista tem ainda contra si ele mesmo. Vira e mexe, escorrega em declarações, como as feitas à ultima edição da revista inglesa The Economist. Na matéria, ele disse que “o PT está cansado de pedir perdão” e defendeu que não há possibilidade de crescimento sem participação do Estado, declarações que não combinam com a estratégia da campanha de fazer um movimento em direção ao centro. A falta de um sinal claro de como será a economia e quem será o ministro da área em sua eventual administração também gera desconfianças.
Não é de hoje que os candidatos usam o apelo do voto útil. Há quatro anos, aliás, o atual presidente fez um movimento do tipo: “Bolsonaro pode estar a um Amoêdo ou a um Alvaro Dias de vencer no primeiro turno”, disse Flávio Bolsonaro, no Twitter, às vésperas da eleição. O apelo não teve o êxito necessário para liquidar a fatura na primeira fase, mas provocou estragos. Aliás, quem mais perdeu eleitores foi Geraldo Alckmin, então no PSDB. Dos 8% na véspera, despencou para 4,8%. Agora, ironicamente, o ex-tucano faz parte da força-tarefa de Lula. O movimento tem sido executado com muito cuidado para não destruir pontes com os alvos da campanha caso o PT necessite dos mesmos aliados na segunda etapa (Simone Tebet já deu o alerta de que o MDB pode liberar seus quadros na etapa final caso os ataques persistam). De qualquer forma, mesmo se isso não for suficiente para encerrar o pleito em 2 de outubro, o entorno de Lula acredita que o esforço vai ajudá-lo a chegar mais forte à fase decisiva, na qual pesa um outro dado histórico a favor do petista: desde a redemocratização, nunca houve virada de jogo entre o primeiro e o segundo turno presidenciais. A conferir.
Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808