José Múcio Monteiro tinha tudo para ser o ministro menos longevo do governo Lula — quem sabe até um dos menos longevos da história. Sete dias depois de tomar posse no comando da Defesa, em 2023, ele estava na linha de frente de uma das crises políticas mais graves desde a redemocratização do país. No 8 de Janeiro, Múcio almoçava em um restaurante em Brasília quando foi avisado de que apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro haviam deixado o acampamento montado no quartel-general do Exército em direção à Praça dos Três Poderes. A manifestação, como se sabe, terminou com a invasão e depredação dos prédios do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Ainda naquele dia trágico, o presidente Lula deu ordens para debelar a insurgência e prender imediatamente todos os responsáveis pelos ataques, incluindo, se fosse o caso, os militares envolvidos. Era o pior começo possível para quem assumiu o cargo com a missão de normalizar as relações, que já não eram nada boas, entre o governo e a tropa.
Deputado federal por cinco mandatos, chefe da articulação política de Lula entre 2007 e 2009 e ex-ministro do Tribunal de Contas da União, Múcio é conhecido pela habilidade de conversar e pelo talento em circular pelos diferentes espectros políticos. O momento exigia alguém com esse perfil para o cargo de ministro da Defesa. Inicialmente, ele chegou a recusar o convite do presidente justificando, em tom de brincadeira, que não sabia “nem dar um tiro”, mas diz que acabou cedendo por ser um “refém da gratidão”. Ao aceitar a função, um dos primeiros recados que recebeu foi o de que até o Alto Comando das Forças Armadas estava contaminado pela politização do governo Jair Bolsonaro e que uma significativa parcela dos militares resistia a prestar continência a Lula — um cenário de extrema gravidade. “O que você vai fazer diante dessa situação?”, perguntou um interlocutor. “Eu vou evitar que eles se encontrem”, respondeu. Era, evidentemente, uma brincadeira. A estratégia traçada pelo ministro era justamente fazer o contrário disso.
Múcio organizou encontros, garantiu a participação do presidente em solenidades militares, promoveu agendas com os comandantes para falar sobre assuntos administrativos, discutir promoções e combinar investimentos. O 8 de Janeiro, no entanto, continuava dificultando a aproximação com a instituição como um todo, principalmente quando a Polícia Federal passou a investigar oficiais de alta patente. Os comandantes nunca admitiram o envolvimento da instituição em qualquer ato ilegal — muito menos que no dia 8 de janeiro houve uma tentativa de sublevação. Na medida em que as investigações mostraram a participação isolada de alguns militares, poupando a instituição, as resistências diminuíram de ambos os lados.
Janja, por exemplo, não escondia sua ojeriza aos militares, a ponto de recusar que eles atuassem em sua segurança. No mês passado, a primeira-dama foi madrinha de lançamento de um submarino da Marinha. “Que Deus abençoe este submarino e todos os marinheiros que aqui navegarem”, disse ela no evento. Do lado fardado, sobram elogios à atuação de Múcio. “Nós podemos falar em pacificação. E isso significa uma relação de respeito, baseada na cordialidade, na confiança e no profissionalismo com o comandante, que é o presidente da República. Sem experiência pregressa e num momento difícil, o principal ator para a construção disso é o ministro Múcio. Temos de fazer esse reconhecimento”, afirmou a VEJA o general Tomás Paiva, comandante do Exército.
Recentemente, coube a Múcio desarmar uma bomba que podia ter colocado tudo a perder. O ministro foi alertado de que havia uma programação especial do Ministério dos Direitos Humanos para lembrar o dia 31 de março, aniversário do golpe militar de 1964. O roteiro incluía homenagens às vítimas de tortura e a criação de memoriais para os mortos durante o regime. Ao saber da programação, Lula pediu ao titular daquela pasta, Silvio Almeida, para cancelar o evento, argumentando que isso geraria um constrangimento desnecessário neste momento. Em outro gesto na direção da política de desarmar bombas, no último dia 19, o presidente participou da cerimônia de comemoração do Dia do Exército na mesma praça onde funcionou, em janeiro do ano passado, o famoso acampamento golpista. Entre o público presente, havia apoiadores e críticos do governo, houve pequenas manifestações de uma e de outra parte, mas a tensão que havia antes não é nem de longe a mesma.
Passados dezesseis meses à frente de uma das missões mais espinhosas da Esplanada, Múcio, além de continuar sendo um estranho no ninho, também pode se considerar um sobrevivente. O ministro já chamou Jair Bolsonaro de “democrata”, defendeu os acampamentos em frente aos quartéis militares e repetiu diversas vezes que as Forças Armadas foram as responsáveis por evitar, em vez de articular, um golpe contra Lula — ou seja, rezou todo esse tempo ao contrário da cartilha empunhada pelos aliados do governo. Além disso, o chefe da Defesa atuou para conter as investidas do PT, que, entre outras incursões, tentou alterar as regras de promoções dos oficiais e ainda defendeu a criação de uma Guarda Nacional, o que, na prática, esvaziaria a atuação do Exército. Antes mesmo de completar um mês no cargo, Múcio recebeu a ligação de um assessor palaciano advertindo que ele poderia ser substituído no cargo. A resposta foi bem ao estilo dele: “Acho o máximo, ótima ideia. Estou feliz que o presidente achou alguém para a Defesa”. A demissão, por óbvio, não passava de fogo amigo.
No mês passado, na festa de aniversário do ex-ministro José Dirceu, o deputado e ex-presidente do PT Rui Falcão aproveitou a oportunidade para fustigar o ministro diante de uma roda de jornalistas. Ao se aproximar de Múcio, o parlamentar fez questão de criticar em alto e bom som o cancelamento dos atos programados pelo Ministério dos Direitos Humanos para o dia 31 de março. Depois, perguntou ao ministro até quando ele seguiria na pasta. Quem assistiu à cena ficou em dúvida se a pergunta era uma brincadeira ou uma provocação. Se foi uma provocação, Rui Falcão talvez desconheça que, ironicamente, os petardos do PT têm a valia de fortalecer Múcio dentro da caserna. “Coloquem no jornal que o PT quer a cabeça dele, porque isso o credencia”, brinca um aliado, sabedor da tendência conservadora dos militares. Hábil, o ministro também conseguiu resolver situações delicadas sem criar marola. Ele se empenhou pessoalmente no afastamento de todos os militares arrolados nas investigações sobre os atos golpistas e esteve no centro da articulação que inviabilizou a promoção do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro.
No último dia 17, o ministro da Defesa e os comandantes das três Forças passaram por uma sabatina de mais de cinco horas na Câmara dos Deputados. Depois de fazer um balanço positivo de sua gestão, Múcio reafirmou que apenas “alguns” fardados “indisciplinados” se envolveram em planos golpistas. Garantiu também que a relação de confiança entre o governo e os militares foi, enfim, restabelecida. “O que eu quero dizer é que se quebrou o gelo. O mais importante que a gente tem é a fala, e a gente deve usá-la para aproximar, para pacificar e pedir desculpas”, disse depois a VEJA. O bombeiro saiu do Congresso aplaudido até pela oposição.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890