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Como o crime organizado provocou mudanças no mapa eleitoral do Rio

Seções eleitorais fluminenses mudam de endereço para evitar que eleitores sejam coagidos a votar nos candidatos do tráfico e das milícias

Por Sofia Cerqueira, Lucas Mathias Atualizado em 19 jul 2024, 22h20 - Publicado em 19 jul 2024, 06h00
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  • Em qualquer eleição, aí incluídas as municipais que ocorrerão em outubro, a vitória de um candidato está atrelada a fatores como partido, financiamento de campanha, tempo de propaganda eleitoral e padrinhos políticos, além, claro, da sua história pessoal. Em vastas extensões do Rio de Janeiro dominadas pelas milícias ou pelo tráfico — ou pelas duas pragas associadas —, porém, o que conta mesmo não é nada disso. Na lógica cruel que se impõe nesses territórios, é o poderio do crime organizado que dita quem deve ou não ser eleito, seja impedindo o acesso dos candidatos que não estão alinhados com ele, seja coagindo moradores a votar em seus escolhidos. A situação escalonou a tal ponto nas últimas votações que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) fluminense decidiu alterar o mapa eleitoral do estado, trocando a localização de seções para lugares menos suscetíveis à ação dos criminosos. VEJA teve acesso com exclusividade a vinte dos 93 locais de votação cujos endereços serão mudados na eleição deste ano.

    O critério básico adotado para montar a lista de transferência de seções dá a dimensão do problema: entram nela todos os locais onde as urnas, no dia da votação, têm de ser transportadas em “caveirões”, os blindados da Polícia Militar — o que, por si só, demonstra que mudar de sala é uma boa providência, mas mal arranha o drama de quem tem seu cotidiano controlado por bandidos. Do pacote fazem parte pontos críticos como os complexos do Alemão, da Maré e do Chapadão e os bairros de Anchieta e Costa Barros, na Zona Norte carioca, além de Realengo e Senador Camará, na Zona Oeste. Municípios da Baixada Fluminense, como Nova Iguaçu e Caxias, além das cidades de Niterói, São Gonçalo e Angra dos Reis, também estão na relação. “Se o aparato de votação precisa ser levado nessas condições, está mais do que claro que é inviável manter as seções nesses locais. Não há segurança nem para eleitores, nem para mesários e fiscais”, ressalta o presidente do TRE-­RJ, Henrique Carlos de Andrade Figueira. A migração das urnas não altera as zonas eleitorais, atreladas ao endereço residencial do eleitor — elas simplesmente serão acomodadas em prédios na mesma área, só que localizados em avenidas movimentadas, com grande circulação e fácil acesso policial.

    RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL, 01-08-2014, 10h00: Vista da favela Nova Brasilia. Aumento do numero de casos de violencia no Complexo do Alemao, regiao com 13 favelas e 4 Unidades de Policia Pacificadoras (UPPs), expoe a fragilidade do projeto de pacificacao do Rio de Janeiro. Denize Moraes, 49, teve seu filho, o mototaxista Caio Moraes, 20, assassinado em maio deste ano na favela da Grota, uma das favelas no Alemao. O inquerito sobre esta morte teria que ficar pronto no ultimo domingo (27), mas nao foi finalizado pela Delegacia de Homicidios. Testemunhas dizem que Caio Moraes foi morto por um tiro de um policial da UPP. (Foto: Daniel Marenco/Folhapress, COTIDIANO) ORG XMIT: AGEN1408011606561708 ORG XMIT: AGEN2108171918734401
    ESTADO PARALELO - Complexo do Alemão: 100 dos 163 bairros do Rio sob controle de bandidos (Daniel Marenco/Folhapress/.)

    No intuito de conter a interferência do tráfico e das milícias na eleição de outubro, o TRE do Rio solicitou ainda o apoio do Exército para coibir pressões sobre os eleitores e a prática de boca de urna. Uma mulher que trabalha em um estabelecimento no Complexo do Alemão, na Penha, e foi mesária no pleito de 2022, detalhou à reportagem como se dá o achaque — no caso, de traficantes do Comando Vermelho. “Eles ficam nas ruas próximas e até nos corredores do local de votação, intimidando moradores e quem trabalha ali. Ninguém tem coragem de falar nada”, conta, sob a condição de anonimato. Estudo da Universidade Federal Fluminense (UFF) em parceria com o Instituto Fogo Cruzado mostra que um quinto da Região Metropolitana do Rio (467 quilômetros quadrados) está sob influência do crime organizado, um aumento de 105% em relação a 2008. Na capital, milicianos e traficantes estão presentes em cerca de 100 dos 163 bairros.

    Conforme testemunhos ouvidos por VEJA, a coação dos eleitores é feita por meio de três canais: os próprios bandidos, seus mensageiros e líderes comunitários cooptados. “Acontece de baterem na nossa porta com um político do lado dizendo para votar no ‘nosso’ candidato. Ninguém é bobo de não atender”, afirma um morador de uma área da Maré sob domínio de milicianos. Em alguns bairros da Zona Oeste, a abordagem é ainda mais intimidadora. Um comerciante de Realengo revelou que, dias antes da votação, é comum bandidos convocarem a população para reuniões nas quais fazem propaganda de seus candidatos e anotam os dados de cada título de eleitor, dando a entender que têm meios de conferir voto a voto.

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    facebook Eduardo Paes
    TUDO DOMINADO - Eduardo Paes: em 2022, prefeito denunciou ao TSE que candidatos foram impedidos de ingressar em áreas de milícia (Reprodução/Facebook)

    O terror imposto nessas comunidades é cada vez mais abrangente, a ponto de, na última eleição, em 2022, o prefeito carioca, Eduardo Paes, pedir ajuda ao TSE para conter intimidações a políticos em áreas sob o domínio da bandidagem. “Quem faz política no Rio sabe que o candidato que não está no esquema não entra em territórios controlados por grupos armados”, atesta a vereadora e candidata à reeleição Tainá de Paula (PT). Em 2020, ela foi abordada por criminosos ao tentar fazer campanha na Cidade de Deus e no Complexo da Penha. A tática de traficantes e milicianos para plantar asseclas no Legislativo se sofisticou. Antes, integrantes dos próprios bandos, com processos nas costas, entravam na disputa. Agora, eles se valem de nomes sem ficha corrida previamente cooptados pelas quadrilhas e engordam sua potencial bancada com candidatos que pagam entre 300 000 e 1 milhão de reais, ou lhes prometem um naco de negócios escusos, para fazer campanha em áreas dominadas.“Estamos lançando mão dos setores de inteligência e de estatística para não só impedir o controle territorial como garantir o exercício da cidadania”, diz o secretário de Segurança do Rio, Victor Santos.

    Com um histórico deplorável de bandalheira eleitoral alimentada pelo tráfico e pelas milícias, o terceiro maior colégio eleitoral do país (13 milhões de eleitores) conta, desde a votação de 2022, com o Gabinete Extraordinário de Segurança Institucional (Gaesi) do TRE-RJ, que envolve diversos órgãos e instituições do estado. Com destaque na empreitada, o Ministério Público criou ferramentas para municiar 165 promotorias eleitorais, reunindo informações dos tribunais de contas, das polícias e de ouvidorias, com o objetivo de impugnar rapidamente candidaturas irregulares e auxiliar em investigações criminais. “Um dos principais propósitos dessa força-tarefa é impedir que representantes do crime consigam vagas nas câmaras e nas prefeituras do Rio”, enfatiza Luciano Mattos, procurador-geral do MP fluminense. A iniciativa caminha junto com a mudança dos quase 100 locais de votação. “Medidas como estas são importantes, mas insuficientes. A relação da política com o crime tem que ser objeto de ações permanentes”, alerta Daniel Hirata, sociólogo da UFF. Facilitar o voto livre e desimpedido é um começo, mas a trajetória para livrar o Rio de Janeiro do jugo dos bandidos ainda tem muito chão pela frente.

    Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902

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