Era perto das 22 horas do dia 30 de outubro quando Luiz Inácio Lula da Silva se dirigiu aos jornalistas em um hotel em São Paulo para falar como o primeiro brasileiro a obter nas urnas o terceiro mandato de presidente da República. Bastante emocionado, emitiu uma espécie de contra-atestado de óbito. “Eu me considero um cidadão que teve um processo de ressurreição na política brasileira. Tentaram me enterrar vivo e eu estou aqui para governar este país”, disse — repetiria a fala logo depois na Avenida Paulista, no primeiro encontro com eleitores após a vitória. No último dia 12, em sua diplomação no Tribunal Superior Eleitoral, entre discursos em defesa da democracia, da Constituição e da pacificação do país, Lula chorou — e voltou a lembrar a via-crúcis que havia percorrido até ali. “Eu quero pedir desculpas pela emoção, porque, quem passou o que eu passei nesses últimos anos, estar aqui agora é a certeza de que Deus existe”, afirmou.
Lula tem mesmo o que comemorar. Condenado à prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no caso envolvendo um tríplex no Guarujá, no litoral de São Paulo, ele teve a sentença confirmada pela segunda instância, perdeu uma infinidade de recursos nas Cortes superiores e foi parar na cadeia em Curitiba, onde ficou 580 dias. Inelegível, tentou mesmo assim disputar a eleição de 2018, mas teve a pretensão barrada pela Justiça. Detrás das grades, assistiu à chegada da extrema direita ao poder com Jair Bolsonaro, chorou a perda de familiares, viu a sua relevância política minguar e o número de processos judiciais crescer, reduzindo a cada dia as chances de sair da prisão e voltar ao cenário.
A reviravolta aconteceu de forma surpreendente em março de 2021, quando o ministro Edson Fachin, do STF, anulou todas as condenações contra o petista por considerar que Curitiba não era o foro adequado para tramitar o processo. Enquanto o país ainda tentava estupefato entender a decisão solitária, o pleno da Suprema Corte ratificou a decisão. Dali para a frente, Lula não só voltava ao jogo, como começou a colocar seus inimigos contra a parede. O primeiro foi seu algoz, o ex-juiz Sergio Moro, que três meses depois foi reconhecido pelo mesmo STF como parcial na condução da ação contra Lula. Uma a uma, as acusações contra o petista foram virando pó.
O retorno de Lula ao tabuleiro político antecipou e mudou a disputa presidencial, que acabou se tornando uma das mais longas e mais polarizadas da história política brasileira. O embate inédito entre um presidente e um ex-presidente, que alinharam os seus numerosos exércitos à direita e à esquerda, tomou todos os espaços do espectro político. Numa campanha marcada pela confrontação ideológica, fake news, debate raso sobre os problemas do país e ataques mútuos abaixo da cintura, o petista derrotou o presidente por pouco: 50,9% a 49,1% dos votos.
O triunfo só foi possível porque Lula teve a decisão acertada de construir a frente mais ampla possível. Montou a maior coligação já feita em torno de seu nome, com dez partidos, incluindo a inédita união de todas as grandes siglas da esquerda. Acertou também na aproximação com o então tucano Geraldo Alckmin, duas vezes candidato a presidente, uma delas contra o próprio Lula, em 2006. A aliança representou um aceno significativo ao centro e a setores arredios ao petismo, como o empresariado. No segundo turno, ampliou a frente, com apoios significativos como os do ex-presidente FHC, da senadora Simone Tebet (MDB), de parte do empresariado e de economistas importantes como Arminio Fraga.
O desafio agora é tentar espelhar na montagem do governo a ampla aliança, não só com a divisão de cargos importantes, mas principalmente conciliando diferentes visões sobre temas centrais. Ele terá pela frente uma oposição forte, possivelmente com a liderança de Bolsonaro. As dificuldades de Lula não são pequenas nesta sua volta: vai governar um país que nunca esteve tão dividido e com problemas graves e urgentes a serem enfrentados, a começar pela delicada situação da economia (nesse aspecto, ele emitiu sinais preocupantes em discursos repetidos contra questões como a das privatizações e com nomeações polêmicas, como a escolha de Aloizio Mercadante para o comando do BNDES). A maior parte dos eleitores tem a expectativa de que, a partir de 2023, Lula deixe de lado as ideias antigas e equivocadas, sendo capaz de colocar o país de volta nos trilhos do desenvolvimento. É um desafio tão grande quanto foi seu triunfo.
Publicado em VEJA de 28 de dezembro de 2022, edição nº 2821