CPI da Pandemia: as estratégias do governo Bolsonaro e da oposição
O relator Renan Calheiros, o ex-ministro Mandetta e governadores entram na mira do Planalto. A reação será do mesmo calibre
Pela maneira como começou, o duelo entre governo e oposição na recém-criada Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia promete ser bruto. Em entrevista publicada nas Páginas Amarelas desta edição de VEJA, o ministro da Justiça, Anderson Torres, revela que vai requisitar à Polícia Federal informações sobre todas as investigações em curso que envolvem desvios de recursos enviados aos estados e municípios pelo Ministério da Saúde para o combate à Covid-19. Disse isso num contexto em que defendia a ampliação da investigação do Congresso para apurar ações e omissões de autoridades que teriam contribuído para agravar a tragédia sanitária que já passa de 400 000 mortos. A referência do ministro não foi por acaso. É uma estratégia. Torres, um experiente delegado que ainda pertence aos quadros da PF, sabe o potencial do que irá receber. Nos últimos doze meses, foram realizadas 75 operações policiais em 23 estados. Há quebras de sigilo telefônico, delações premiadas e uma infinidade de documentos que mostram a ação de quadrilhas que se aproveitaram da pandemia para desviar dinheiro público, em muitos casos diante da complacência ou em parceria com alguns políticos.
Essas informações podem servir para inibir ataques contra o governo, forçar acordos, impedir a convocação de testemunhas, intimidar, constranger, chantagear e até mesmo fulminar adversários. Podem, enfim, ser usadas como uma poderosa arma de ataque ou como um monumental escudo de defesa. E serão. O ministro da Justiça entende que a CPI precisa seguir o dinheiro — e seguir o dinheiro, nesse caso, significa transferir ao Congresso e tornar público um arsenal de suspeitas de corrupção na aplicação dos mais de 60 bilhões de reais que o Ministério da Saúde repassou a estados e municípios desde o início da pandemia. Nesse balaio, há de tudo um pouco. A Polícia Federal já identificou desvios de mais de 2 bilhões de reais, derivados de um rol de fraudes que incluem a compra de equipamentos médicos que não funcionavam, superfaturamento na montagem de hospitais de campanha, aquisição de medicamentos falsos e pagamento de propina. Escarafunchar esse acervo de irregularidades seria uma contribuição importante para descortinar uma das raízes do desastre, mas esse, ao menos por enquanto, não é o objetivo principal do governo. O plano é usar o material como instrumento de pressão.
Instalada por determinação do Supremo Tribunal Federal, a CPI é formada por onze titulares, dos quais apenas quatro são alinhados ao Planalto. No flanco oposto estão políticos experientes e articulados, como Renan Calheiros (MDB-AL), escolhido como relator da comissão e pai do governador de Alagoas, Renan Filho (MDB). O cargo confere ao parlamentar a função de coordenar e supervisionar toda a investigação, o que inclui, entre outras coisas, a tarefa de colocar em votação requerimentos de convocação de testemunhas, estabelecer o cronograma de audiências e, por último, apresentar as conclusões do trabalho. Calheiros é considerado um parlamentar hostil ao governo. Em seu primeiro pronunciamento após assumir o posto, o senador criticou as tentativas dos governistas de afastá-lo do cargo e disse que a investigação não será uma “inquisição” contra autoridades. Sem citar nominalmente o presidente da República, deu as linhas gerais do roteiro que pretende seguir: “A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na Saúde. Quando se inverte, a morte é certa”. E alertou: “Antecipo que intimidações, e todos os dias nós a vemos, sob qualquer modalidade e arreganhos não nos deterão”.
A advertência incisiva do senador, que acumula um histórico de acusações nada edificantes, foi interpretada como uma resposta a um episódio que havia ocorrido quatro dias antes. Na manhã da sexta-feira 23, quando o nome de Calheiros já havia sido praticamente confirmado como futuro relator da CPI, o lobista Milton Lyra foi alvo de um mandado de busca e apreensão. Ele é investigado em inquéritos que apuram desvios de recursos do Postalis, o fundo de pensão dos funcionários dos Correios. O lobista é suspeito de intermediar operações irregulares que resultaram em imensos prejuízos ao fundo e grandes lucros para ele. Segundo as investigações, Lyra não agia por conta própria. Era preposto de um grupo de políticos do MDB, entre eles Renan Calheiros. A diligência foi considerada extemporânea e fora de propósito, principalmente pelo tempo que se passou desde o início da investigação. “Essa operação não foi coincidência nem foi obra do acaso. Foi, com certeza, um recado”, disse uma pessoa próxima ao relator da CPI. Lyra é um personagem conhecido no submundo do poder. Ele chegou a ser preso em 2018. Na Operação Lava-Jato foi acusado por delatores da empreiteira Odebrecht e do grupo Hypermarcas de receber propina para viabilizar leis de interesse das empresas junto à bancada do MDB no Congresso. Entre os supostos beneficiados do esquema, além de Renan, estaria também o senador Jader Barbalho (PA), membro suplente da CPI. Jader é pai do governador paraense Helder Barbalho, investigado nos tais inquéritos que apuram corrupção na compra de respiradores durante a pandemia.
Os dois lados armam suas estratégias de enfrentamento. O médico Luiz Henrique Mandetta foi escolhido para inaugurar a série de depoimentos da CPI. Ministro da Saúde de Jair Bolsonaro no início da pandemia, ele foi demitido por divergir do presidente na condução das políticas de prevenção e combate ao coronavírus. Desde então, se transformou num crítico feroz das ações e dos métodos do governo. Mandetta acompanhou de dentro a pregação oficial ao uso da cloroquina, viu a forma com que a gravidade da doença foi minimizada e sofreu pressões para recomendar tratamentos sem embasamento científico. Os parlamentares de oposição acreditam que o ex-ministro pode dimensionar o grau da responsabilidade do presidente da República e de seus auxiliares no agravamento da crise — e pode mesmo. Certamente por causa disso, senadores governistas, ouvidos sob reserva, disseram a VEJA que, para além da oitiva, estão escrutinando contratos e licitações celebrados durante os catorze meses da gestão de Mandetta na Saúde. Cogitam, inclusive, convocar para depor dois ex-assessores do ex-ministro que atuaram no setor de compras do ministério. Pré-candidato à Presidência da República, Mandetta disse que não iria se manifestar.
“O governo pode municiar seus senadores, mas nada disso pode esconder o fato de que ele é o maior responsável por essa situação”, disse a VEJA o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM). E acrescentou: “O governo espalhou cloroquina e ivermectina para tratamento precoce, disse para nos contaminarmos em busca de uma imunidade de rebanho e agora está com receio de investigação”. O parlamentar, que se define como “independente”, ou seja, não se alinha nem com o governo nem com a aposição, ressalta que o objetivo da comissão não é atingir o presidente da República. Mesmo assim, conta, ele tem sido alvo de ataques virulentos nas redes sociais. Aziz, de acordo com versões que circulam na internet, planejaria usar a CPI como trampolim para uma futura candidatura ao governo do Amazonas, em 2022. “A origem dessas agressões e das notícias falsas é o tal gabinete do ódio”, disse ele.
Na semana passada, VEJA publicou uma entrevista exclusiva com o ex-secretário de Comunicação da Presidência (Secom), o publicitário Fabio Wajngarten, que provocou um alvoroço entre os senadores, especialmente os de oposição. Sem citar nomes, ele responsabilizou o Ministério da Saúde pelo atraso da vacinação Covid-19 e disse que houve “incompetência” e “ineficiência” no processo de aquisição das vacinas no período em que a pasta era comandada pelo general Eduardo Pazuello. Logo depois de instalada a CPI, foram apresentados cinco requerimentos para convocar o ex-ministro e outros quatro para ouvir o ex-chefe da Secom. De acordo com o publicitário, no início do segundo semestre do ano passado, a farmacêutica americana Pfizer ofereceu 70 milhões de doses de sua vacina ao Brasil, mas o Ministério da Saúde não se interessou. Se o negócio tivesse sido fechado, a imunização começaria em dezembro, e muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Wajngarten revelou que, com o conhecimento do presidente Bolsonaro, ele mesmo tentou fechar um acordo com a empresa, que acabou travado pela equipe de Pazuello. Evidentemente, o Planalto não gostou das revelações do ex-secretário.
Embora tradicionalmente CPIs se limitem a um acirrado jogo de forças com parcos resultados concretos — honrosas exceções à CPI do caso PC Farias, que acelerou a queda de Fernando Collor, em 1992, e à dos Correios, que em 2005 resultou na prisão de mais de uma dezena de políticos no escândalo do mensalão —, Pazuello é considerado, ao mesmo tempo, o elo frágil do Planalto e uma espécie de arquivo vivo do pior período da pandemia. Ao deixar a pasta da Saúde, em março, o general lançou no ar uma incômoda suspeita: a de que o Ministério da Saúde era uma capitania de apaniguados políticos em busca do que chamou de “pixulé”. Na CPI, ele terá a oportunidade de explicar a insinuação. Flagrado passeando sem máscara no último fim de semana em um shopping em Manaus, o ex-ministro está sendo treinado dentro do Palácio do Planalto para sobreviver à artilharia dos senadores. Aliás, divergências sobre a estratégia de ação e sobre a maneira como o governo deve lidar com o Congresso a partir de agora, particularmente em relação à comissão de inquérito, provocaram atritos entre a recém-nomeada ministra-chefe da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, e o grupo formado pelo chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, e pelo secretário-geral da Presidência, Onyx Lorenzoni (veja o quadro). Depois da cena constrangedora, Pazuello justificou que estava no shopping para comprar uma máscara nova. Se as explicações do ex-ministro à CPI forem do mesmo nível, o governo que se cuide.
Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736