Não é exagero dizer que a Operação Lava Jato somente chegou ao atual patamar, com graúdos políticos e empresários morando atrás das grades, graças ao instituto da delação premiada. Até o momento, as investigações comandadas em Brasília e em Curitiba já contabilizam 158 acordos celebrados – e não há, no horizonte, qualquer previsão de quando esse número deve parar de avançar.
Ironicamente, é também um acordo de colaboração que impõe um dos momentos mais tensos à operação, colocando em xeque a veracidade das informações repassadas aos investigadores e, mais grave, a isenção dos procuradores e até de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O terremoto provocado pela delação da gigante JBS, a maior processadora de carnes do mundo, agora é sucedido por outro tremor com a revelação de que os executivos do grupo podem ter omitido informações, selecionado os alvos que seriam entregues à Justiça e ainda contado com a ajuda de um procurador que, oficialmente, atuava do outro lado do balcão.
É nesse contexto que o Congresso Nacional instalou, nesta semana, uma comissão para investigar a JBS. Em maio, assim que foi homologada a delação do grupo, foi ensaiada a criação do colegiado composto por deputados e senadores. Por trás do esforço de investigar a empresa, estava também a intenção dos congressistas, muitos deles alvos ou amigos dos alvos da Lava Jato, de emparedar a Procuradoria-Geral da República e o Supremo. No acordo, Joesley Batista e seus subordinados, após admitirem comprar quase 2.000 políticos, acabaram ganhando imunidade total. A grita dos acusados foi imediata e, agora, volta a reverberar com a confissão involuntária das maquiagens na colaboração.
Nos bastidores, membros da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) já discutem os ajustes que podem ser feitos à lei 12.850 de 2013, que traz os regramentos da delação premiada. As mudanças seriam propostas no relatório final do colegiado, por meio, por exemplo, de um projeto de lei.
O tema ganhou fôlego no outro canto do planeta, enquanto Michel Temer e seus aliados participavam do encontro dos Brics, na China, no início da semana. “Nós nos reunimos e discutimos as mudanças”, afirmou o vice-líder do governo, Beto Mansur (PRB-SP), que garante que Temer não participou das negociações. “A CPMI pode ser um caminho para melhorar a delação. É preciso tomar cuidado. O cara, quando está preso, delata até a mãe dele”, continuou.
Um dos cotados para assumir a relatoria da comissão – e, portanto, escrever o parecer final -, o deputado Carlos Marun (PMDB-MS) já tem em mente algumas propostas. Ele defende, por exemplo, a presença dos advogados dos acusados durante os depoimentos dos delatores – atualmente, há apenas a presença da defesa daqueles que estão no processo de colaboração. Para ele, a medida iria coibir “abusos e direcionamento” por parte dos investigadores.
O problema, porém, é claro: o defensor poderia alertar seu cliente e, com isso, aumentaria o risco de destruição de provas, de compra de testemunhas e de fugas. Ou seja: os efeitos das confissões poderiam acabar sendo nulos.
Outra proposta defendida é que haja um prazo-limite para o investigado decidir fazer suas confissões. Marun avalia que deve ser estabelecido um período de até 30 dias para o acusado, em prisão preventiva, fechar um acordo de colaboração.
Atualmente, não há duração estabelecida para a preventiva e tampouco limitações temporais para a realização do acordo. Marcelo Odebrecht, por exemplo, ficou um ano e meio preso até delatar. Críticos ao sistema falam em “tortura” em prol das confissões. No entanto, fato é que a maior parte dos acordos – 84% deles – foi fechada com pessoas soltas.
Além disso, já há previsões na lei para punir falhas nos acordos e o STF e a PGR já indicam que os benefícios concedidos aos executivos da JBS devem ser revistos por eles terem omitido informações.
“Existe um potencial conflito de interesses. É verdade que o Legislativo, como um órgão soberano para fazer leis, tem direito a fazer debates dessa natureza. O risco é esse debate ser contaminado por interesses do grupo político que tem sido objeto de investigação”, afirmou o cientista político Rafael Cortez. Ele aponta ainda para o risco de as decisões do Congresso limitarem o poder da delação premiada e diminuir a força do mecanismo.
Marun, no entanto, nega que o Congresso esteja agindo para diminuir o alcance das delações. “Ficam colocando a culpa no Congresso de tentar acabar com a Lava-Jato. Não é o Congresso. Quem está tropeçando nas próprias pernas são aqueles que são responsáveis por conceder o benefício para esses criminosos”, afirma o parlamentar. “A atual lei de delação permite que cometam erros graves e sérios. Não dá para fingir que não aconteceu nada.”
Já estão em tramitação alguns projetos que sugerem mudanças à lei da delação. Um deles, do deputado Heráclito Fortes (PSB-PI), sugere que o investigado deve oferecer todas as informações que tenha conhecimento, ficando proibida a possibilidade de aditamento. Outro, do deputado Wadih Damous (PT-RJ), criminaliza e pune, com prisão de até quatro anos, a divulgação do conteúdo dos depoimentos colhidos no âmbito do acordo de colaboração, pendente ou não de homologação judicial. Em 2015, a CPI da Petrobras propôs que ficasse impedido de negociar com a Justiça aquele delator que já tenha rompido acordo anterior – como foi o caso de Alberto Youssef.
Além da CPMI, outro caminho para mudanças nas regras atuais da delação seria no âmbito das discussões da Reforma do Código Penal. Uma comissão na Câmara discute o tema.