De juiz para ministro, Moro abrandou discurso sobre caixa dois
Ao aceitar tese de políticos, de que prática é menos grave que o enriquecimento ilícito, titular da Justiça contrariou discurso do passado
O envio ao Congresso do chamado “pacote anticrime”, conjunto de propostas do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, contra o crime violento e as facções criminosas, ganhou destaque não por suas medidas mais drásticas, como o endurecimento de penas, mas pelo que não inclui: a criminalização do chamado “caixa dois”, as doações não declaradas às campanhas eleitorais. O tema provocava declarações inflamadas do então juiz federal, responsável pela Operação Lava Jato. Ao chegar ao ministério do governo Bolsonaro, as manifestações tornaram-se mais moderadas.
O governo apresentou os projetos separados, de um lado o “pacote anticrime”; de outro, a proposta contra o caixa dois. Ao justificar a atitude, o ministro reiterou o que já havia dito no passado, que considera fraudes eleitorais e corrupção como coisas diferentes, mas deu passos atrás ao aceitar a tese de “agentes políticos”, de que o caixa dois “não tem a mesma gravidade que corrupção, crime organizado e crimes violentos”.
Ao separar as discussões, o ministro entra em confronto com as posições que defendia enquanto magistrado. Em abril de 2017, durante um evento nos Estados Unidos, ele definiu o caixa dois como um “crime contra a democracia”, que prejudicaria mais por subverter a vontade popular. Agora, Moro faz questão de deixar claro que a relativização da prática é uma posição dos políticos, não sua.
Ao dobrar-se à opinião de congressistas, Moro faz um cálculo pragmático: do jeito que estava, o pacote como um todo enfrentaria uma dura resistência. Por outro lado, separada de iniciativas com algum apelo popular, como a flexibilização da punição a policiais que venham a matar em serviço, a proposta contra o caixa dois vai tramitar sozinha e não deve ter o mesmo apoio da classe política.
Veja abaixo as posições de Moro sobre caixa dois:
2016
Agosto – ‘Trapaça em uma eleição’
Moro definia o caixa dois como uma forma de “trapaça” e já defendia a sua criminalização diante do entendimento de que essa é uma “carência” da lei brasileira.
“O caixa dois muitas vezes é visto como um ilícito menor, mas é trapaça em uma eleição. Não existe justificativa ética para essa conduta”
Em audiência pública na Câmara dos Deputados
Na mesma semana, ao libertar o publicitário João Santana, marqueteiro de campanhas do PT, ele rejeitou o “álibi ‘todos assim fazem'” e comparou os “fraudadores de campanha” a ladrões de banco. “Se um ladrão de bancos afirma ao juiz como álibi que outros também roubam bancos, isso não faz qualquer diferença em relação a sua culpa”, completou.
Outubro e novembro de 2016 – Ameaça à democracia
Durante a discussão no Legislativo sobre as chamadas “Dez Medidas Contra a Corrupção”, Moro veio a público em mais de uma oportunidade para falar sobre a proposta encampada pelo Ministério Público Federal. Durante um encontro na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), o juiz classificou a criminalização do caixa dois como parte essencial do projeto.
Paralelamente, começou a tramitar um projeto que, ao fim e ao cabo, anistiaria o caixa dois. Naquela altura, o magistrado distribuiu uma nota em que dizia que essa proposta poderia impactar o sucesso da Operação Lava Jato e até a integridade da democracia brasileira.
“Anistiar condutas de corrupção e de lavagem impactaria não só as investigações e os processos já julgados no âmbito da Operação Lava Jato, mas a integridade e a credibilidade, interna e externa, do Estado de Direito e da democracia brasileira, com consequências imprevisíveis para o futuro do país”
Em nota
2017
Fevereiro – “Tão ou mais reprovável”
Ao sentenciar o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, o juiz Sergio Moro rebateu a tese da defesa de que não havia “enriquecimento pessoal” nas acusações e disse que, se o dinheiro desviado teve fins eleitorais, isso não faria diferença – pelo contrário, seria até pior.
“A destinação da vantagem indevida em acordos de corrupção a partidos políticos e a campanhas eleitorais é tão ou mais reprovável do que a sua destinação ao enriquecimento pessoal, considerando o prejuízo causado à integridade do processo político-eleitoral”
Em sentença
Abril – “Crime contra a democracia”
Durante participação na Brazil Conference, na Universidade Harvard (EUA), o juiz deu sua declaração mais dura contra o caixa dois, que definiu como “crime contra a democracia” e disse que a prática poderia ser mais prejudicial à sociedade do que “colocar o dinheiro na Suíça”.
“A mim causa estranheza a distinção entre a corrupção eleitoral e enriquecimento ilícito. A corrupção eleitoral é até mais grave, porque, no caso do enriquecimento ilícito, você coloca o dinheiro na Suíça e não prejudica mais ninguém. Agora, usar dinheiro de corrupção para ganhar uma eleição vai atrapalhar mais gente”
Em palestra no Brazil Conference
2018
Junho – ‘Vantagens financeiras’
Cumprindo a determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de enviar um inquérito sobre o ex-governador do Paraná Beto Richa (PSDB) para a Justiça Eleitoral, Moro reforçou a tese de que receber recursos ilícitos para a disputa eleitoral não pode ser considerado “mero ‘caixa dois de campanha'”, por configurar um tipo de vantagem indevida para quem os recebe.
“Não se trata de ‘mero caixa dois’ de campanha, mas sim, pelo menos em cognição sumária, de pagamento de vantagens financeiras por solicitação de agente público, no caso, o ex-chefe de Gabinete do então governador, em troca da prática ou da omissão de ato de ofício”
Dezembro – ‘Confiança pessoal’
Designado para o Ministério da Justiça, Sergio Moro se viu às voltas com a admissão do indicado para a Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM), de que este havia utilizado recursos não declarados em sua campanha à deputado federal.
Naquele momento, Moro disse que Lorenzoni se empenhou na aprovação daquelas “Dez Medidas contra a Corrupção”, que se desculpou e que gozava da sua “confiança pessoal”.
2019
Fevereiro – ‘Não é corrupção’
Em entrevista a VEJA no começo do mês, Moro voltou a comentar o assunto. O ministro observou que, apesar de não haver uma menção explícita sobre o caixa dois, a prática já é vedada pela atual legislação eleitoral e que, portanto, seu único comentário é de que Onyx responderá caso seja culpado.
“O caixa dois é errado. As pessoas que eventualmente cometeram esse ato têm de ser sancionadas segundo a lei que vigora. Se esse é o caso do ministro Onyx ou não, quem vai determinar é o processo.”
Em entrevista a VEJA
Ao comentar o projeto de lei “anticrime”, logo depois de apresentá-lo à Câmara dos Deputados, o agora ministro da Justiça comentou a decisão de fatiá-lo e não incluí-lo ao lado dos crime organizado e dos crimes violentos. De acordo com o ex-juiz, ele atendeu a pleitos de políticos que, ao contrário do que ele disse no passado, consideram o caixa dois menos grave que a corrupção.
“Houve reclamações por parte de agentes políticos de que o caixa dois é um crime grave, mas não tem a mesma gravidade de corrupção, crime organizado e crimes violentos. Então, nós acabamos optando por colocar a criminalização num projeto à parte, mas que está sendo encaminhado neste momento. Foi o governo ouvindo as reclamações razoáveis dos parlamentares quanto a esse ponto e simplesmente adotando uma estratégia diferente. Mas os projetos serão apresentados ao mesmo tempo”
Em entrevista coletiva