DEM se aproxima taticamente de Bolsonaro, sem descartar outros candidatos
Seguindo a sua tradição de esperteza política, o partido se associa como estratégia ao governo atual, mas deixa possibilidades em aberto para 2022
Desde a sua criação, o Democratas quase sempre desempenhou um papel de coadjuvante na política nacional. Descendente direto da Arena, partido que deu sustentação ao regime militar, o DEM viveu seus anos de glória quando era chamado de PFL, respondia pela Vice-Presidência da República na gestão de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e controlava cargos poderosos da administração pública. Nos governos do PT, a legenda passou à oposição, condição com a qual nunca se sentiu à vontade. Não foram tempos fáceis. Ameaçada de extinção pelo então presidente Lula e com bancadas cada vez menores, a sigla decidiu se repaginar e renovou a sua direção, aposentando os velhos caciques que lhe deram fama. Esse plano de sobrevivência deu certo. Tão certo que, já no mandato de Jair Bolsonaro, o DEM conquistou as presidências da Câmara e do Senado, o que levou uma ala do partido a acalentar o sonho de lançar candidatura própria ao Palácio do Planalto ou, pelo menos, de influenciar na construção de uma candidatura presidencial de centro em 2022.
A um ano e oito meses das eleições, esse sonho por protagonismo ainda pode ser realizado, mas a tendência hoje é que o DEM honre seu histórico de linha auxiliar e, entre outras opções como coadjuvante, possa até embarcar na canoa da reeleição de Bolsonaro. A bússola partidária apontou para os lados do ex-capitão durante as eleições que definiram a nova cúpula do Congresso. Na condição de chefe da Câmara e de um dos parlamentares mais poderosos do país, Rodrigo Maia (DEM-RJ) lançou como postulante à sua sucessão o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), numa aliança que em tese reunia os três principais partidos de centro (PSDB, MDB e DEM), além de legendas de esquerda, como o PT e o PDT. O objetivo dessa articulação entre antigos adversários era derrotar Arthur Lira (Progressistas-AL), o nome apoiado por Bolsonaro, e dessa forma enfraquecer o presidente. A vitória de Rossi, se consumada, credenciaria Maia como negociador privilegiado de uma candidatura presidencial em 2022 e daria a ele mais força para tentar filiar ao DEM o apresentador Luciano Huck, de quem poderia ser o vice numa chapa presidencial. O partido poderia, finalmente, tentar subir ao centro do tablado. Maia só não contava ser traído pela bancada da própria legenda, que preferiu votar em Lira, eleito o novo presidente da Câmara com 302 votos, contra 145 de Rossi.
Considerando-se apunhalado pelos correligionários e tratorado por Bolsonaro dentro de sua própria casa, Maia disparou contra o presidente do DEM, o ex-prefeito de Salvador ACM Neto, acusando-o de traição e de vendilhão, por supostamente entregar a sigla ao governo em troca de cargos e outras benesses. Palavras duras, mas de pouco efeito prático. O fato é que a maioria do DEM não concordava com os planos de Maia. Oficialmente, o partido tem uma postura de independência com relação ao governo, mas na prática detém cargos importantes na administração federal. Comanda, por exemplo, os ministérios da Agricultura, com Tereza Cristina, e da Cidadania, com Onyx Lorenzoni, que pode ser transferido para a Secretaria-Geral da Presidência. As suas bancadas parlamentares votam com o governo em assuntos econômicos. O novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), foi eleito com o apoio de Bolsonaro. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, uma das estrelas do partido, até ensaiou um afastamento do Planalto durante a pandemia de Covid-19, mas logo voltou aos braços do presidente. Notório representante do setor ruralista, que está fechado com Bolsonaro, Caiado se encarregou de responder publicamente à crítica de Maia a ACM Neto. “Não deve ser considerada pela classe política porque é indicadora de internação hospitalar.”
Isolado e magoado, Maia deve sair da legenda. Demitido por Bolsonaro no ano passado, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que também se apresenta como oposicionista, deve seguir o mesmo caminho. Superada essa fase de decantação, o DEM deve continuar a fazer o que sempre fez de melhor: colocar os pés em todas as canoas possíveis, o que significa estreitar laços com Bolsonaro sem, no entanto, fechar as portas para uma futura composição com o governador João Doria ou com o empresário e apresentador de TV Luciano Huck, cuja filiação é cobiçada, entre outros, pelo Cidadania. Na última terça-feira, 9, ACM Neto foi a São Paulo para jantar com Doria. No encontro, Neto disse ao tucano que não há nenhuma definição sobre 2022 e responsabilizou Maia pelo que chamou de desgaste desnecessário (veja a entrevista na pág. 26). Ele ainda fez questão de ressaltar o histórico de parceria entre o DEM e o PSDB, mas não prometeu a reedição da aliança no ano que vem. Até aqui, Neto também não fez promessas a Bolsonaro, já que uma das maiores rejeições enfrentadas pelo presidente é justamente na Bahia, cujo governo estadual o presidente do DEM quer disputar em 2022.
A lista de opções da legenda, por sinal, é ampla — e talvez surpreenda os eleitores mais à direita do partido. “Não tenho o que esconder, já que ele nunca pediu segredo. O Neto sempre me afirmou que não havia hipótese de o DEM ir com o Bolsonaro. Ele me falou isso por diversas vezes. Dizia que era um erro e um suicídio político”, afirmou Carlos Lupi, presidente do PDT, partido que pretende lançar o ex-ministro Ciro Gomes à Presidência. “Para se ter uma ideia, há um mês seria o próprio Rodrigo o vice do Ciro”, acrescentou Lupi. Enquanto Maia conversava com os pedetistas (é notória sua admiração por Ciro), ACM Neto avançava nas tratativas com Bolsonaro. No fim do ano passado, o presidente recebeu o ex-prefeito, fora da agenda, para um café da manhã no Palácio da Alvorada. O encontro vinha sendo organizado desde o fim das eleições municipais e mobilizou um time de ministros que tentam levar o cacique do DEM para a base do governo, casos de Tereza Cristina e Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura.
À época, ACM Neto trabalhava para eleger Rodrigo Pacheco ao comando do Senado, enquanto a sua relação com Maia já dava sinais de desgaste. Antes da visita, auxiliares de Bolsonaro sondaram se ACM Neto toparia assumir a Casa Civil, hoje comandada pelo general Braga Netto. O convite foi recusado porque, segundo o democrata, o embarque definiria qual caminho o partido seguirá em 2022, o que ele não pretende fazer com tanta antecedência. É por isso também que o DEM até agora não deu garantia a Luciano Huck de que ele será candidato caso se filie à sigla. O apresentador ainda não decidiu se concorrerá nas eleições, mas participa cada vez mais do debate político e tem entre seus interlocutores figuras de relevo como o ex-presidente do BC Armínio Fraga e o ex-governador capixaba Paulo Hartung. Em conversas reservadas, Rodrigo Maia contou que Huck provavelmente anunciaria a sua decisão até o fim do primeiro semestre deste ano. O problema é que o DEM acha esse prazo muito curto para qualquer acordo definitivo. “O DEM não vai ter condições de se posicionar no primeiro semestre. Estamos com dificuldades de casar o timing das coisas”, afirma um líder do partido.
Frequentes nos últimos meses, os sinais de aproximação com o governo já vinham causando irritação em Rodrigo Maia, mas só se transformaram em racha interno com o desembarque do partido da candidatura de Baleia Rossi. Os próprios dirigentes do DEM costumavam repetir que a debandada representaria “um tiro no meio da cabeça” do então presidente da Câmara — e foi exatamente o que aconteceu. Só que quem deu o tiro foi o próprio Maia. Um dia antes da votação, ao ser informado da decisão da cúpula do DEM de não dar suporte ao seu candidato, Maia se indignou. Irritado, sem nenhuma temperança e capacidade de flexibilização, disse que a medida representava uma “desmoralização” e, fora de si, ameaçou deixar a sigla. “Vocês vão acabar com a minha carreira política”, vaticinou. Faltou jogo de cintura para aceitar a derrota, se recompor e olhar para 2022 sem se deixar levar pelo fígado.
A crise interna no DEM é um sintoma inequívoco da dificuldade para a construção de candidaturas de centro em 2022. Bolsonaro já cooptou o chamado Centrão, que (hoje) tende a apoiar a sua reeleição. A derrota acachapante de Rodrigo Maia enterrou seu plano de construir uma alternativa própria no DEM e, de quebra, dificultou a vida de Luciano Huck, que vê um de seus principais apoiadores perder musculatura política rapidamente. No PSDB, a situação também não é pacífica. Durante a eleição para a presidência da Câmara, a bancada tucana ensaiou fazer o mesmo e abandonar a aliança em torno de Baleia Rossi. Só desistiu por pressão, entre outros, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para quem a adesão a Lira arranharia a imagem da legenda diante dos eleitores.
Há mais algaravia no ninho. Determinado a disputar o Planalto, Doria aproveitou a confusão para forçar a saída do partido do deputado Aécio Neves, a quem acusa de comandar a insurreição a favor de Lira. Esquecido de que política não faz com rompantes, o governador também anunciou a intenção de comandar o PSDB, a fim de facilitar o seu projeto eleitoral. Evidentemente, parte do partido reagiu e declarou que resistirá a essa ofensiva. Espertamente, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, outro nome da legenda cotado para disputar o Planalto, começou a criticar Doria publicamente. Enquanto o centro se consome em disputas internas, Bolsonaro corre sozinho em sua raia e vai liderando a disputa. Apesar da crise econômica, da confusão em relação à vacina e de seus desatinos diários, o atual ocupante do Palácio do Planalto tem 28% de intenções de voto para presidente, segundo um levantamento da XP/Ipespe divulgado na semana passada. Em segundo lugar, aparecem empatados o ex-ministro Sergio Moro e o petista Fernando Haddad, com 12%. Ciro Gomes tem 11%. Os centristas Huck e Doria registraram apenas, respectivamente, 7% e 4%. Pragmático, o DEM de ACM Neto estará de olho nesses números até o último momento possível, antes de se posicionar.
Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725