Como é típico da política brasileira, Jair Bolsonaro esqueceu rapidamente a promessa de que não se envolveria nas eleições municipais. Usou as lives semanais para pedir votos e exibiu santinhos de apadrinhados. Não adiantou: fez campanha para 59 candidatos e só dez deles emplacaram. No balanço final do pleito, o bolsonarismo foi derrotado onde o presidente assumiu um lado e mostrou pouca intensidade ou influência em diversas praças. Seu inimigo número 1, o petismo, foi ainda pior, passando por uma nova rodada de vexames. O outrora todo-poderoso partido da esquerda, o PT, não comanda mais nenhuma prefeitura de capital brasileira. Enquanto as urnas castigaram os radicais, as siglas de centro saíram premiadas, com o controle de quase metade dos municípios do país. Mesmo tendo caído de 1 035 para 784 prefeituras, o MDB do ex-presidente Michel Temer continua sendo o maioral nessa área. Nas capitais, PSDB e DEM mostraram força, com quatro vitórias cada um, incluindo a do tucano Bruno Covas, em São Paulo, e a do democrata Eduardo Paes, no Rio — dois colégios eleitorais de peso que votaram contra um candidato da esquerda e contra um apoiado diretamente por Bolsonaro.
Numa eleição impactada pela pandemia e com as campanhas de rua reduzidas, o eleitorado indicou, sim, estar farto de extremos — e menos propenso a novidades. A “velha política”, calcada numa maior experiência e capacidade de negociação, saiu fortalecida das urnas. A questão é entender quanto esse fenômeno pode influenciar a eleição de 2022. Pleitos municipais registram tendências que podem ser confirmadas dois anos depois. Em 2000, o PT colheu diversas vitórias pelo país, inclusive em São Paulo, com Marta Suplicy. Em 2002, depois de várias tentativas frustradas, Luiz Inácio Lula da Silva foi presidente. Em 2016, o eleitorado brasileiro deu demonstrações claras de que queria outsiders na política. Nessa toada, João Doria foi eleito na cidade de São Paulo e Alexandre Kalil, em Belo Horizonte. No pleito seguinte, Jair Bolsonaro, que bradava contra tudo e contra todos, consagrou-se nas urnas. Esse movimento parece perder força agora. “Não foi um chamado à moderação, mas a clivagem antipetista e lavajatista arrefeceu”, pontua Lucas Martins Novaes, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).
Nessa perspectiva, e olhando para 2022, o desafio que se coloca para o centro é encontrar um nome que empolgue, um líder que aglutine apoios em todo o país e seja capaz de desbancar o presidente, que busca a reeleição, a exemplo do fenômeno que varreu Donald Trump nos Estados Unidos. Em outros termos, não surgiu ainda uma espécie de “Joe Biden brasileiro”. Por enquanto, conforme fica evidente na mais nova pesquisa sobre o assunto, esse espaço permanece desocupado. A pedido de VEJA, o instituto Paraná Pesquisas entrevistou por telefone 2 036 pessoas no país entre os dias 28 de novembro e 1º de dezembro, testando cenários para a eleição presidencial. E a principal conclusão do levantamento é que, embora tenha saído derrotado das urnas na semana passada, Jair Bolsonaro continua sólido na dianteira. Na verdade, se a disputa ocorresse hoje, Bolsonaro seria o vitorioso — por larga margem.
Ao contrário do que se imagina, sua popularidade continua firme. De acordo com a pesquisa, sua taxa de aprovação é de 50,2%, a maior já registrada pelo instituto (em abril era de 44% e em julho, de 47,1%). Na comparação com os levantamentos anteriores, o presidente avançou acima da margem de erro de 2 pontos porcentuais nas três simulações de primeiro turno, sempre acima da casa dos 30%. Enquanto isso, os possíveis adversários retrocederam ou estagnaram. Nas cinco projeções de confrontos no segundo turno, Bolsonaro também aparece com ampla vantagem, entre as casas de 40% a 50% das intenções de voto, dependendo do oponente. À esquerda, Ciro e Lula contabilizam desempenhos semelhantes, na faixa de 30%. Mais ao centro, com 34,7%, o ex-ministro Sergio Moro é quem mais se aproxima do capitão, ficando cerca de 10 pontos abaixo dele. Outros nomes do mesmo espectro, como João Doria e o apresentador Luciano Huck, cravaram abaixo do desempenho de Moro (23,8% e 29,7%, respectivamente).
Evidentemente, dois anos em política (ainda mais nos tempos atuais) são uma eternidade. Nem mesmo o presidente Jair Bolsonaro dizia em 2016 que seria eleito dois anos depois. Situações inusitadas também acontecem, como a facada desferida pelo desvairado Adélio Bispo que sacramentou a vitória do então candidato do PSL. Mas, nas condições atuais de temperatura e pressão, o cenário para os grupos do centro ainda é muito complicado. O ex-ministro Moro, por exemplo, acaba de dar um sinal claro de que está fora do jogo ao aceitar um cargo na consultoria americana Alvarez & Marsal, especializada na reestruturação de companhias em dificuldades financeiras. Visto como herói por combater a corrupção, Moro agora vai trabalhar numa empresa que tem a Odebrecht entre os clientes. Como explicar isso aos eleitores? Para piorar, o passo dado pelo ex-juiz tem cara de uma decisão mais duradoura. Além de uma remuneração que pode variar entre 5 milhões e 10 milhões de reais ao ano, Moro deve morar nos Estados Unidos por pelo menos alguns meses, o que vai afastá-lo das negociações de bastidores num momento decisivo. Seu apoio, porém, pode ser um fator determinante na disputa. “Mesmo não sendo candidato, não tem como dizer que ele não terá peso no pleito”, diz Murilo Hidalgo, diretor do Paraná Pesquisas.
Nesse campo ao centro, a candidatura mais provável é a de João Doria, embora ele ainda não admita publicamente. O governador, de fato, se fortaleceu com a reeleição de Bruno Covas em São Paulo, principal colégio eleitoral do país. Apesar de o PSDB ter perdido prefeituras no país (caiu de 785 para 520), os números foram favoráveis a Doria em território paulista. O partido continuou como principal força política no estado e venceu em 179 das 645 cidades. Em 2012, foram 171 e, no pleito passado, 173. O problema é nacionalizar o nome num cenário em que o PSDB foi varrido de vários redutos que tradicionalmente ocupou nos últimos anos, como Minas Gerais, Goiás e Paraná. Para se cacifar, Doria aposta, principalmente, na comparação da gestão tucana em São Paulo com a do governo federal. No enfrentamento da pandemia, enquanto o presidente bate na tecla do negacionismo, o tucano tratou de formar desde o início um comitê de crise para combater a doença. Nos últimos meses, vem trabalhando fortemente pela CoronaVac, vacina da farmacêutica chinesa Sinovac desenvolvida em parceria com o Instituto Butantan. Na economia, Doria quer enfatizar comparações como a do desempenho do PIB. Neste trágico 2020, a expectativa de São Paulo é de uma taxa zero — um desempenho ruim, mas menos pior que a média nacional, perto de 4 pontos negativos.
A viabilidade do governador paulista no restante do país também passa por agregar partidos de envergadura e capazes de lhe fornecer palanque em estados onde ele é pouco conhecido. O tucano tem tentado amarrar uma aliança com o MDB e o DEM para 2022, mas a situação é bem mais complexa do que parece. A começar pelo MDB, conhecido por não agir em unidade, mas, sim, por ser uma federação de diretórios estaduais independentes, que caminham de acordo com os cenários políticos locais. Situação semelhante ocorre hoje com o DEM. O partido cresceu 73% na eleição municipal e se cacifou como “a noiva cobiçada por todos”. Mas os democratas também se dividem em alas. A seccional de São Paulo quer que o DEM entre em acordo com Doria para lançar o vice-governador do estado, Rodrigo Garcia, ao Palácio dos Bandeirantes. Político habilidoso e que vislumbra o governo da Bahia em 2022, o presidente do partido, ACM Neto, já é visto dentro do tucanato como simpatizante de uma candidatura de Luciano Huck.
O apresentador da Rede Globo, aliás, tem dado mostras de que, desta vez, pretende concorrer à Presidência. Em um jantar com empresários no mês passado, Huck afirmou que não se sentia pronto para disputar o cargo em 2018, mas que agora está preparado para se lançar na disputa. Há tempos ele vem fazendo reuniões com técnicos e especialistas para pensar propostas para o país. No campo econômico, o núcleo duro de apoio a sua candidatura é formado por Armínio Fraga e por Daniel Goldberg. Já na área política, Huck cita o ex-governador Paulo Hartung e o líder do RenovaBR, Eduardo Mufarrej, como seus principais conselheiros. Restam dúvidas, no entanto, sobre a real disposição do apresentador em abandonar lucrativos contratos publicitários e com a Rede Globo para mergulhar num terreno em que ele não tem nenhuma experiência e no qual terá pela frente um adversário duro, com uma base fiel de eleitores, como é o caso de Bolsonaro. Em 2018, por exemplo, teria sido mais fácil.
Para o presidente, não haveria cenário melhor do que uma disputa marcada pelo antagonismo com o PT ou com a esquerda mais estridente. Lula está impedido de concorrer a cargos eletivos em razão da Lei da Ficha Limpa, mas ainda tenta reverter suas condenações na Lava-Jato com recursos no STF. Aliados de Bolsonaro dizem que ele só pensa nisto: pegar alguém dessa ala num segundo turno — Lula, de preferência. Outro movimento, bem articulado por alguns dos estrategistas do presidente, são os sinais de paz a representantes do centro (veja reportagem na pág. 36). Se Bolsonaro caminhar para o centro e parar com as guerras ideológicas, poderá se tornar um candidato muito difícil de ser batido em 22. No campo à esquerda, as placas tectônicas já começaram a se mexer. Nesta semana, o senador Jaques Wagner (BA) se antecipou às discussões sobre renovação e afirmou em entrevista ao UOL que se coloca à disposição para disputar a Presidência. Além disso, o ex-líder dos sem-teto Guilherme Boulos (PSOL) se transformou num nome relevante com o desempenho nas eleições paulistanas. Também haverá na próxima disputa uma ala de centro-esquerda capitaneada pelo PDT, de Ciro Gomes, e pelo PSB. Os partidos conseguiram bons resultados no Nordeste e têm defendido abrir negociações com siglas que estão mais à direita, algo que o petismo rechaça por completo (veja reportagem na pág. 40).
Por mais que haja disposição nos extremos para forçar um novo embate ideológico, os próximos anos deverão marcar uma mudança política em nível mundial. A eleição do democrata Joe Biden para ocupar a Casa Branca no lugar de Donald Trump deixará órfãos os líderes que vinham se beneficiando da postura incendiária do presidente americano para amparar comportamentos insensatos. No caso de Bolsonaro, se insistir na dinâmica “terraplanista”, o isolamento internacional poderá se agravar porque Biden será obrigado a demonstrar uma preocupação maior do que o antecessor com a questão ambiental e com os direitos humanos. “A derrota de Trump foi desfavorável para a extrema direita em nível internacional. Bolsonaro agora enfrentará pressões externas bem maiores”, diz Marcus Ianoni, cientista político da Universidade Federal Fluminense (UFF). A eleição do democrata americano também foi importada como um fator novo para a agenda política do Brasil. O primeiro a explorar esse fenômeno foi Luciano Huck. Aliados do apresentador relataram a VEJA que esperaram a confirmação da vitória de Biden nos Estados Unidos para vazar para a imprensa que Huck havia se encontrado com Moro para discutir a conjuntura política do Brasil. A estratégia surtiu efeito e ampliou o impacto das conversas que o apresentador vem mantendo com figuras políticas. Um jantar que Huck teria com empresários naquela semana pulou de oito convidados para 23 depois da divulgação da reunião com Moro.
O ano de 2021, de fato, será crucial para definir as chances de Bolsonaro e do aparecimento, ou não, de um nome de centro que possa batê-lo. Como mostra a pesquisa, Bolsonaro ainda surfa nos bons índices de popularidade que obteve a partir do pagamento do auxílio emergencial durante a pandemia. O benefício, porém, será encerrado no fim deste ano e não há dinheiro disponível para outro programa de distribuição de renda tão abrangente até a eleição. No caso do presidente, se não quiser dar espaço a ninguém, a melhor estratégia seria abraçar de vez a agenda de reformas que podem fazer o Brasil decolar, tema de capa da edição passada de VEJA. Na quinta-feira 3, com a divulgação de que o PIB cresceu 7,7% no terceiro trimestre, o país mostrou que existem boas possibilidades de uma retomada no pós-pandemia. Falta só um empurrão. Com a economia em recuperação, sem tuítes nem acenos a grupelhos radicais, Bolsonaro dificilmente perderia em 22 — seria ele quem poderia seduzir o centro, como fez em 2018. Mas nem mesmo seus aliados acham que o presidente tem a clareza desse caminho.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716