Desastre anunciado: Bia Kicis trava a comissão mais importante da Câmara
Inabilidade e sectarismo da deputada do PSL ameaçam a reforma administrativa
Dia 13 de abril, 13 horas. A deputada Bia Kicis (PSL-DF), presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), dá início ao que deveria ser um dia intenso de trabalho. Estão previstas as análises de treze itens pela comissão mais importante da Câmara. Mas ela se atrapalha já no início. Gagueja com uma solicitação banal, cochicha pedidos de ajuda aos assessores e se perde com as ações protelatórias da oposição. Antes mesmo de avançarem para a primeira discussão, os deputados gastam uma hora e vinte minutos repudiando falas dos colegas Éder Mauro (PSD-PA) e Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) consideradas ofensivas às mulheres. Em seguida, mais quarenta minutos são desperdiçados com o debate de um item que já havia sido retirado da pauta. Para quem acompanha a área sob a chefia de Kicis, o resultado não espanta: outra sessão termina sem nenhum progresso nas pautas. Seria cômico, não fosse trágico para o país. A principal função da CCJ, que tem 66 deputados, é atestar a legalidade e a constitucionalidade dos projetos de lei que tramitam na Câmara — ou seja, decide se as iniciativas seguirão para o plenário ou se serão arquivadas. Na fila atual há temas fundamentais para o Brasil, como a reforma administrativa.
A paralisia de Kicis vem basicamente da junção da sua falta de experiência com o fato de ter sido alçada ao comando de um colegiado composto de políticos experientes na arte da obstrução. Como deputada de primeiro mandato, mais afeita a mexer no Twitter do que a legislar, ela claramente desconhece o regimento. Não sabe quando pode ou não cortar os opositores, que há um mês exploram todos os instrumentos para emperrar as votações. Um recurso protelatório clássico é a apresentação de questões de ordens, expediente bastante utilizado por Maria do Rosário (PT-RS), uma das mais ativas na operação — ela insiste, por exemplo, que a comissão só vote projetos relativos à Covid-19, mesmo com a presidente dizendo que não havia nada nesse sentido pronto para ser votado. Fernanda Melchionna (PSOL-RS) apresentou questão de ordem para exigir que Kicis usasse a máscara mesmo quando estivesse falando — a presidente rebateu, e o imbróglio deu início a outra longa discussão. Outra arma é provocar os bolsonaristas, como em 31 de março, quando a oposição teceu longas críticas ao golpe de 1964 e, com o debate, enrolou mais uma sessão. Dessa forma, em seu primeiro mês, Kicis aprovou apenas cinco proposições — desempenho muito inferior ao dos antecessores. No mesmo período, Felipe Francischini (PSL-PR) votou 26, Daniel Vilela (MDB-GO), 29, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), 34.
O fato de ser uma das principais militantes da ala ideológica do bolsonarismo também atrapalha. Investigada pelo STF no inquérito dos atos antidemocráticos, Kicis não controla os ânimos de outros novatos do PSL, que são arrastados pela oposição para intermináveis debates sobre o significado da palavra “genocida”, por exemplo. Fora da comissão, o comportamento da deputada é igualmente problemático. Nas últimas semanas, chegou a pedir um levante policial contra o governo da Bahia após um soldado em surto ter sido morto por colegas — em seguida, apagou o post. Também se dedicou nos últimos dias a defender a tese da volta do voto impresso, um fetiche que embala os bolsonaristas, incluindo o presidente. Essas intervenções ideológicas da deputada dão combustível à oposição nas sessões. No dia 12, deputados de esquerda reclamaram com o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), da dificuldade da deputada em assumir um papel neutro na CCJ. Lira assentiu com os comentários e disse que já havia pedido moderação. Em conversas com aliados, já confidenciou que considera a atuação de Kicis péssima. Deputados do Centrão concordam com as críticas.
Embora seja aliada, o desempenho de Kicis na comissão pode se transformar em um problema para o governo. A ideia da oposição é obstruir ao máximo os trabalhos para impedir a tramitação da reforma administrativa, apontada como prioridade pela própria Kicis. O relator, Darci de Matos (PSD-SC), postergou a apresentação do relatório duas vezes, mas diz que pretende aprovar o projeto no plenário ainda neste ano, o que parece cada vez mais difícil. “A demora em resolver essa questão nos obriga a conviver mais tempo com supersalários, privilégios e serviços públicos de baixa qualidade”, afirma Paulo Uebel, ex-secretário de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, que elaborou o projeto. Um estudo do Centro de Liderança Pública (CLP) estima que o impacto fiscal com a sua aprovação pode alcançar 403,3 bilhões de reais até 2034.
O quadro na CCJ não chega a surpreender ninguém, já que a indicação de Kicis foi cercada de resistências, inclusive no seu partido. Ela foi escolhida pelo PSL após um acordo da ala bolsonarista com o presidente da sigla, Luciano Bivar (PE), que assumiu a 1ª Secretaria da Câmara. Além dela, o PSL deu mais uma comissão importante, a de Meio Ambiente, a outra representante do grupo ideológico. Carla Zambelli (PSL-SP) já admitiu ser leiga no assunto — disse que ignora o que seja grilagem de terras — e durante uma viagem a Roraima afirmou que o colegiado vai apurar supostos “crimes ambientais cometidos na Amazônia venezuelana” (como se o desmatamento nas florestas brasileiras já não fosse preocupante). São dois exemplos claros de que, mesmo no jogo normal das negociações políticas, é preciso ser criterioso para não entregar tarefas relevantes a gente que talvez não esteja preparada. O resultado, por enquanto, é falta de foco e inaptidão para lidar com temas tão sérios para o país.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734