Desde a adesão do Centrão à sua base aliada no Congresso, Jair Bolsonaro tem distribuído benesses ao grupo, considerado fundamental para a aprovação de projetos de interesse do governo, sobretudo na área econômica, e também para impedir o avanço de um eventual pedido de impeachment. Em março passado, quando anunciou uma minirreforma ministerial, o presidente entregou ao Centrão o comando da Secretaria de Governo, que cuida, entre outras coisas, da liberação de emendas parlamentares e da nomeação para cargos públicos, justamente os ativos que servem para consolidar a aliança entre as partes. Foi escalada para chefiar a pasta a deputada de primeiro mandato Flávia Arruda. A escolha parecia perfeita, já que Flávia é filiada ao PL de Valdemar Costa Neto, tinha como padrinho o comandante da Câmara, Arthur Lira, do Progressistas, e recebeu o aval do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Jorge Oliveira, homem da estrita confiança de Bolsonaro. Empossada na presença de próceres do Congresso, a ministra era vista como símbolo da boa relação entre governo e Centrão e da harmonia entre os partidos que integram esse grupo.
Passados menos de quatro meses desde a posse de Flávia, a tal harmonia dentro do Centrão, se existiu, já não é a mesma. Em conversas reservadas, a ministra é alvo de fritura, como ocorre com quase todos os ocupantes desse cargo. Líderes de partido e parlamentares reclamam que indicações para postos na máquina pública combinadas ainda na gestão do antecessor de Flávia, o general Luiz Eduardo Ramos, que foi deslocado para a Casa Civil, ainda não foram formalizadas. Queixam-se também de que certas legendas, como o Progressistas, têm mais emendas liberadas do que outras, inclusive o próprio PL da ministra. Flávia, conforme o relato dos descontentes, não teria força para fazer os ministérios atenderem aos pedidos de cargos e verbas encaminhados por ela. Essa suposta fraqueza pessoal não é o principal problema para o presidente da República. Há outro bem mais grave. Avalistas da escolha da ministra, o Progressistas, que comandou a operação de embarque no governo Bolsonaro, e o PL, que pegou carona na oportunidade, têm entrado em rota de colisão. Um exemplo de disputa entre eles ocorreu na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura.
O PL tinha indicado um nome para a presidência da Conab, que tem um orçamento bilionário neste ano, mas no fim de maio o cargo acabou nas mãos de Guilherme Ribeiro, que é filiado ao Republicanos e próximo do ex-deputado Paulo Maluf, um quadro histórico do Progressistas. Valdemar Costa Neto cobrou Flávia Arruda pelo fato de a legenda dos dois ter sido preterida, deixou clara a sua insatisfação e também fez pressão por outras nomeações que ainda não vingaram, inclusive para diretorias da própria Conab. Progressistas e PL também duelam pelo controle do caixa do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), cujos recursos e capilaridade são considerados grandes trunfos eleitorais. Com orçamento anual de 54 bilhões de reais, o FNDE é utilizado por prefeitos para programas de alimentação e transporte escolar, financiamento de creches e repasses de verbas para matrículas em instituições de ensino. O atual presidente do fundo é Marcelo Lopes da Ponte, que já foi chefe de gabinete do senador Ciro Nogueira, presidente do Progressistas, mas o PL de Valdemar Costa Neto pressiona para que um indicado seu assuma o órgão.
Como é costume em embates desse tipo, os partidos não estão empenhados em implantar suas ideias para a área da educação — se é que elas realmente existem. Os interesses são outros. Em março, uma reportagem de VEJA mostrou que uma diretora do FNDE disse ter sido demitida após alertar o presidente do fundo sobre a irregularidade no repasse de 150 milhões de reais a uma instituição de ensino superior de São Paulo. Segundo o seu relato, Marcelo Lopes — o afilhado de Ciro Nogueira que Valdemar Costa Neto quer substituir — teria abafado o caso porque a falcatrua teria como beneficiários finais caciques políticos. “Se eu denunciasse, ia prejudicar os presidentes do Progressistas e do PL”, declarou a servidora na ocasião, relatando o que teria ouvido de seu antigo superior.
Principal base de apoio de Bolsonaro no Congresso, o Centrão é formado por legendas que sempre marcham ao lado do presidente de turno. E cobram caro por isso. Hoje, seus integrantes querem cargos em estatais do setor elétrico, conhecidas por seus orçamentos bilionários, e reivindicam mais espaço nos ministérios. O líder do Progressistas na Câmara, Ricardo Barros, por exemplo, sonha em voltar ao Ministério da Saúde, pasta que comandou no governo de Michel Temer. Outras legendas, como Republicanos e PTB, fazem lobby pela recriação de ministérios como Trabalho e Desenvolvimento, os quais já comandaram. Além do governismo atávico, o Centrão tem outra característica bem conhecida: dividir-se, nos períodos eleitorais, entre os candidatos favoritos à Presidência, privilegiando obviamente o nome que lidera as pesquisas de intenção de voto. Bolsonaro conhece bem esse histórico. Com passagem por partidos do Centrão, como o próprio Progressistas, o ex-capitão sabe que a parceria só será mantida se as siglas — todas elas — forem devidamente contempladas em suas velhas e conhecidas demandas.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742