Em regra, a eleição municipal não tem relação direta com as eleições gerais. O mau resultado numa não significa necessariamente fracasso na outra. O PT é um exemplo disso. Em 2020, pela primeira vez desde a redemocratização, o partido não venceu em nenhuma capital e conquistou apenas 182 prefeituras, o seu pior desempenho. Em 2022, no entanto, ganhou a Presidência da República pela quinta vez. Apesar dessa lógica de descasamento entre as duas votações, a campanha municipal deste ano terá ares de competição nacional diante dos múltiplos interesses pessoais e partidários em jogo. Os dois principais líderes políticos do país querem transformar a disputa nas maiores cidades numa prévia da corrida ao Palácio do Planalto em 2026. Já partidos de centro lutam para ganhar musculatura Brasil afora e, assim, mais protagonismo no plano federal, a ponto de, quem sabe, apresentarem uma alternativa competitiva daqui a dois anos. Incendiada pela polarização, a eleição de 2024 ainda é considerada estratégica para a formação do futuro Congresso e pode influenciar até uma eventual reforma ministerial, que é cogitada desde o ano passado, mas ainda não foi realizada.
Em 6 de outubro, data do primeiro turno, 156 milhões de eleitores escolherão cerca de 5 570 prefeitos e 60 000 vereadores. Na maior parte dos casos, votarão levando em consideração questões locais, como a qualidade da merenda escolar e dos serviços prestados nos postos de saúde. Mesmo assim, o resultado de suas escolhas terá impacto em engrenagens que alimentam planos, sonhos e ambições de alguns dos principais atores políticos do país. Lula e Bolsonaro entraram firmes nas campanhas em determinadas capitais. Ambos alegam que quem sair vitorioso em São Paulo e no Rio de Janeiro, por exemplo, largará com certa vantagem na sucessão presidencial de 2026. Há ainda um ingrediente de cunho pessoal nesse embate: um quer mostrar que tem mais capacidade do que o outro de transferir votos.
A capital paulista se tornou a arena preferencial da “nacionalização” da campanha deste ano. Na maior cidade do país, Lula está apoiando para prefeito o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL), cuja vitória, segundo o petista, tornará mais remota a possibilidade de os “fascistas” voltarem ao poder. O presidente, ao que parece, só lida bem com autocratas de esquerda (leia a matéria na pág. 50). Já Jair Bolsonaro indicou o ex-coronel da Polícia Militar Ricardo Mello Araújo, de seu partido, o PL, para vice na chapa à reeleição do prefeito Ricardo Nunes (MDB), que sonha com os votos dos apoiadores do ex-presidente, mas faz o que pode para se distanciar da pecha de bolsonarista. Por enquanto, a disputa se anuncia acirrada. Segundo pesquisa Genial/Quaest divulgada na última terça-feira, 30 de julho, há um triplo empate em intenções de voto para a prefeitura de São Paulo: Nunes tem 20%, enquanto Boulos e José Luiz Datena (PSDB) marcam 19%. O apresentador convertido em tucano pode, portanto, romper a polarização (veja a reportagem na pág. 32). Espaço para isso existe, já que, de acordo com o mesmo levantamento, 51% dos entrevistados gostariam que o próximo prefeito fosse independente — ou seja, não fosse aliado nem de Lula nem de Bolsonaro.
O presidente e o antecessor são grandes cabos eleitorais, mas, como ocorreu em 2022, também enfrentam altas taxas de rejeição. Do total de consultados no município de São Paulo, 66% disseram que não votariam num candidato desconhecido indicado pelo petista, e 75% afirmaram o mesmo sobre um concorrente apadrinhado por Bolsonaro. Empenhados em estimular a polarização, os dois rivais têm metas distintas para a eleição municipal, tirando, é claro, o sonho de conquistar o maior número de prefeituras. Lula determinou ao PT que abrisse mão de candidaturas na atual campanha em benefício de aliados, na esperança de que esses, em 2026, retribuam o favor e apoiem a sua reeleição. Os petistas não disputarão as prefeituras, por exemplo, de São Paulo, Rio, Salvador e Recife. Já Bolsonaro, que está inelegível até 2030, mergulhou de cabeça nas articulações municipais por medo de ver desidratada sua liderança no campo da direita, de ser considerado página virada e substituído por outro nome desde já.
Essa preocupação foi externada por seus próprios filhos, que reclamaram de aliados que estariam ensaiando voos solos. “Por onde anda a ‘união da direita’ quando o presidente Bolsonaro traz todos os dias fatos sobre o momento político atual? Respondo: tentando destruir o mesmo Bolsonaro”, escreveu o vereador Carlos Bolsonaro numa rede social. “Estão brincando, fingindo-se de cegos, surdos e mudos, para então se tornarem a ‘direita permitida’ do sistema”, acrescentou. Por enquanto, o ex-presidente não quer abrir espaço para um sucessor e trabalha para recuperar seus direitos políticos na Justiça ou no Congresso. Apesar disso, há pressão para fazer a fila andar, inclusive de empresários e banqueiros. Hoje, são cotados como presidenciáveis no campo da direita, entre outros, os governadores de São Paulo (Tarcísio de Freitas), de Goiás (Ronaldo Caiado), do Paraná (Ratinho Junior) e de Minas Gerais (Romeu Zema). Filiado ao Republicanos, Freitas recebeu convite para migrar para o PL, que, se Bolsonaro deixar, o lançaria à Presidência de bom grado. Até aqui, o governador afirma que não trocará de legenda nem pretende concorrer ao Planalto. Nos bastidores, no entanto, são dados como quase certos os dois movimentos.
No caso de outros presidenciáveis, os obstáculos parecem um pouco maiores. Caiado e Ratinho Junior são filiados, respectivamente, ao União Brasil e ao PSD, siglas que têm como prioridade não a conquista do governo federal, mas a ampliação de suas forças na Câmara dos Deputados, já que é o tamanho da bancada que garante poder de barganha, cargos de primeiro escalão e nacos bilionários do Orçamento. Apesar de considerados independentes, União Brasil e PSD controlam três ministérios cada um e detêm, respectivamente, a terceira e a quarta maiores fatias do fundo eleitoral: 536 milhões de reais e 420 milhões de reais. Uma etapa crucial para a formação das bancadas de deputados federais é justamente a eleição municipal, já que prefeitos e vereadores fazem o trabalho de cabo eleitoral dos parlamentares no dia a dia. Na prática, são os grandes puxadores de votos nos rincões do país. Por isso, eleger aliados em 2024 pode facilitar a vitória na eleição para o Congresso em 2026.
Dependendo do sucesso nas urnas em outubro, os partidos podem cogitar até uma candidatura presidencial. Em 2020, o MDB elegeu o maior número de prefeitos e, dois anos depois, lançou na corrida presidencial a então senadora Simone Tebet, hoje ministra do Planejamento, que terminou na terceira colocação. Outros frutos podem ser colhidos no curto prazo. Na Praça dos Três Poderes, diz-se que, após a campanha municipal, Lula pode finalmente realizar uma reforma ministerial, reorganizando o time para a segunda metade do mandato. Se isso ocorrer, os partidos mais fortes — tanto no Congresso como nos municípios — tendem a ser priorizados na redistribuição das pastas. Os interesses relacionados às urnas são diversos e interligados. “Quando se fala em 2026, temos que passar por 2024”, declarou Bolsonaro num ato de campanha com seu candidato a prefeito do Rio, o deputado Alexandre Ramagem (PL). O tempo dirá qual peso a eleição municipal, uma das mais inflamadas dos últimos tempos, terá na Esplanada dos Ministérios, na eleição do futuro Congresso e na disputa pelo Planalto. Os cerca de 9 000 eleitores de Uiramutã (RR), o município mais ao norte do Brasil, podem até não saber, mas, ao votarem em outubro, ajudarão a mexer peças poderosas no xadrez jogado em Brasília, a mais de 2 600 quilômetros de distância.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904