Em ofensiva arriscada, governo Lula quer regulação do ambiente digital
Pressa na reação traz preocupação por perigo de ressuscitar a censura e limitar a liberdade de expressão
Peça central na vitória de Jair Bolsonaro à Presidência da República, em 2018, quando o Brasil foi apresentado ao fenômeno da massificação de fake news como estratégia eleitoral, o mau uso político das redes sociais se tornou objeto de seguidas tentativas de regulação pelas autoridades. As iniciativas tiveram algum efeito, mas não foram suficientes para deter a proliferação de notícias falsas, mensagens antidemocráticas e campanhas de ódio e difamação. A rede de mentiras marcou também a eleição de 2022 e foi determinante para os atos golpistas de 8 de janeiro, em Brasília. O episódio desencadeou uma nova ofensiva, tocada pelo governo Lula, para tentar equacionar a questão. A gestão do petista sinaliza, ainda que de modo incipiente e vago, a pretensão de regulamentar o ambiente digital, inclusive com maior responsabilização das plataformas pelos conteúdos veiculados — uma iniciativa delicada, que já desperta as primeiras preocupações.
Em pouco mais de um mês, o governo abriu quatro frentes. Ainda antes do levante golpista, a Advocacia-Geral da União (AGU) anunciou a criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, para combater desinformação sobre políticas públicas. A medida foi criticada por não haver no ordenamento jurídico uma definição sobre “desinformação” — o que abre uma brecha para descambar para a censura, como no orwelliano “Ministério da Verdade”. A Procuradoria não está ativa e a sua dinâmica depende da regulamentação por um grupo que inclui autoridades, entidades e acadêmicos. A AGU diz que a ausência de uma lei específica não pode levar ao imobilismo diante de um problema que “está inegavelmente na raiz de um processo de avanço do extremismo”. Outra medida foi o “Pacote da Democracia”, do ministro da Justiça, Flávio Dino, que criminaliza condutas na internet configuradas como terrorismo ou atentado à democracia e responsabiliza as plataformas que não retirarem do ar esse tipo de conteúdo. O ministro Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação (Secom), por sua vez, criou a Secretaria de Políticas Digitais e defendeu a aprovação de leis para regulamentar as redes ainda no primeiro semestre, além da ativação da “rede de defesa da verdade”, sem especificar o que seria.
A ofensiva, no entanto, parece não ser suficiente para Lula, que anunciou a intenção de provocar uma discussão internacional. Ele colocou o assunto na pauta da viagem aos Estados Unidos e aposta na empatia do colega americano Joe Biden, que também foi alvo de uma tentativa de golpe pelos apoiadores de Donald Trump em 2021, estimulada pelas redes sociais. O petista também disse que está disposto a discutir o tema no G20, o fórum das maiores economias do mundo, e no Brics, que reúne países como China, Índia e Rússia. Nos últimos dias, a pretensão de Lula ganhou o respaldo de outro personagem importante na cruzada contra o mau uso das redes sociais, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE e relator de inquéritos do STF que investigam disseminação de notícias falsas e milícias digitais — ele pediu maior regulamentação do tema no país, disse que a Justiça elabora contribuições para enviar ao Congresso, mas defendeu a necessidade de leis internacionais que tenham como norte a defesa da democracia.
A discussão mundial, no entanto, já existe há algum tempo e avança com dificuldades, devido à complexidade e delicadeza do tema. Na última reunião do G20, em novembro, houve um debate específico sobre o assunto. A Unesco, em evento previsto para este mês em Paris, vai apresentar mais de cinquenta sugestões sobre como democracias devem controlar os conteúdos das redes. O assunto é tratado de forma diferente conforme o histórico de cada país. Nos Estados Unidos, costuma-se evocar a Primeira Emenda, que garante liberdade de expressão aos cidadãos, para defender a tese de que qualquer regulação deve ser feita pela opinião pública e pelo mercado. Já a União Europeia, que tem uma discussão mais avançada, começa a pôr em prática em 2023 o Digital Services Act, que vem sendo alvo de debates desde 2018. Ele vai exigir que as plataformas esclareçam informações hoje sigilosas, como o funcionamento de algoritmos na moderação e na disseminação de conteúdo falso. Ou seja, a Europa aposta em regular o procedimento, não o conteúdo.
Embora a necessidade da regulamentação seja ponto pacífico ao redor do mundo, a linha tênue entre liberdade de expressão e censura persiste. Segundo os especialistas, abordar de forma açodada o tema à base de medidas superficiais, como vem tentando fazer agora o governo brasileiro, ainda que com as melhores intenções, é um erro. Cresce o consenso de que qualquer tentativa de regulação precisa ser feita de forma independente, de modo a evitar contaminação por interesses políticos e ideológicos. “O governo não deveria nunca procurar regular decisões individuais das plataformas, como o que ou quem deve ser banido, mas sim exigir que elas tenham sistemas adequados e proporcionais para reduzir o que é prejudicial”, afirmou à VEJA o britânico Jamie Susskind, autor do best-seller The Digital Republic (A República Digital). “Atribuir a qualquer órgão governamental o poder de definir o que é ilícito é problemático. Ainda mais no Brasil, que tem um passado recente de censura que ainda encontra eco no Judiciário”, acrescenta a advogada Luna van Brussel Barroso, autora de Liberdade de Expressão e Democracia na Era Digital. Qualquer discussão mais séria sobre o tema precisa ter a participação das muitas entidades da sociedade civil que têm competência no assunto. “Pensar num modelo de regulamentação desenvolvido em seis meses é muito apressado”, alerta Celina Beatriz, secretária da Comissão de Tecnologia e Inovação da OAB-SP e membra do Instituto de Tecnologia e Sociedade.
As empresas de tecnologia responsáveis pelas redes são parte desse problema, pela falta de transparência e pela demora em responder de forma adequada aos abusos. Algumas companhias mais sérias colaboram hoje com as autoridades, mas focos de resistência persistem, como ficou claro na afronta do Telegram a uma recente decisão de Alexandre de Moraes de suspender o canal do deputado bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG). A big tech não só não cumpriu como classificou a decisão como “indevida, irregular, nula e desproporcional”. Multado em 1,2 milhão de reais pelo caso, o aplicativo, criado e controlado pelos irmãos russos Nikolai e Pavel Durov, já havia sido tirado do ar por Moraes em 2022.
As novas iniciativas do governo petista são o pontapé inicial de uma polêmica que deve crescer. O assunto vai chegar ao Congresso, onde iniciativas do tipo sempre tiveram dificuldades, como o projeto de lei 2.630/2020 (PL das Fake News), que travou na Câmara após ter sido aprovado no Senado. Ou a CPMI das Fake News, aberta em setembro de 2019, que provocou muito barulho, mas foi encerrada sem concluir os trabalhos. “Houve uma aliança entre o governo Bolsonaro e as plataformas, que não querem regulamentação”, diz Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do PL, que espera que ele volte a andar agora com o apoio do governo Lula. Já há reações a isso. O deputado bolsonarista José Medeiros (PL-MT) tomou posse na Câmara usando uma mordaça em protesto contra a suspensão de suas redes pela Justiça e apresentou um projeto para enquadrar na Lei de Abuso de Autoridade o magistrado que determinar a suspensão de perfis por conta apenas de opiniões que foram postadas.
O centro do debate atual é justamente como separar expressões legítimas de pensamento dos discursos de ódio e dos ataques à democracia. As redes sociais têm um papel importante ao ampliar o debate público permitindo a participação de um número maior de pessoas e podem, em tese, ajudar a democracia. Mas não devem ser uma “terra sem lei”. A exigência, no entanto, é que qualquer regulação seja feita sem atropelar questões mais caras, como a liberdade de expressão, e não se confunda com censura. Também não pode atender a interesses políticos mais imediatos ou à necessidade de resposta a um episódio em particular. “A regulamentação pode ser problemática se enquadrada para proteger certo grupo específico da sociedade, ou vista dessa forma. Precisa ter ampla adesão do espectro político”, ensina Jamie Susskind. Ou seja, o que está ruim pode ainda piorar se o problema for combatido com a receita errada.
Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828