Em qualquer democracia, as fricções entre os poderes não apenas são naturais como desejáveis para o processo de amadurecimento institucional. Em 2020, porém, o nível de tensão entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o governo por pouco não cruzou a fronteira do razoável. Uma sequência de decisões judiciais levou o Palácio do Planalto a crer — equivocadamente — que estaria em curso uma conspiração. No início da pandemia, o STF delimitou a competência do presidente para definir regras de restrição em estados e municípios, impediu que ele nomeasse para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal um delegado de sua confiança, determinou que ele depusesse sobre as acusações de que teria tentado interferir em investigações e, no curso de um inquérito sobre a disseminação de fake news, expediu ordens de busca em endereços de empresários e blogueiros governistas. Do outro lado, uma sequência de eventos levou os juízes a suspeitarem que a conspiração partia do Palácio do Planalto. Grupos radicais promoveram manifestações que ostentavam faixas pedindo a volta da ditadura e o fechamento do tribunal. Por mais de uma vez, Bolsonaro compareceu e apoiou os atos, num deles a bordo de um helicóptero militar que sobrevoou a Praça dos Três Poderes. O fato é que houve provocações de ambos os lados.
No auge da crise, o ministro Gilmar Mendes classificou a política de combate à Covid-19 como genocida. O ministro Celso de Mello comparou o Brasil à Alemanha nazista. E a ministra Cármen Lúcia falou em “desgoverno”. Do Planalto, diante de pedidos para que o celular do presidente fosse apreendido como prova de uma suposta interferência na Polícia Federal, o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, afirmou que a medida traria “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Já o general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, alertou que o “outro lado”, se referindo ao STF, não deveria “esticar a corda”. E Jair Bolsonaro, depois das investidas contra os blogueiros governistas, foi ainda mais incisivo: “Acabou, p.!”. A percepção dos dois lados de que houve exageros, principalmente retóricos, e de que o embate institucional começava a trilhar um caminho perigoso acabou arrefecendo os ânimos. A racionalidade, no fim, prevaleceu.
Publicado em VEJA de 30 de dezembro de 2020, edição nº 2719