O Brasil ingressou no olho do furacão do coronavírus com o presidente brigando com o Ministério da Saúde. A situação ficou insustentável, e Jair Bolsonaro jogou duro para fazer prevalecer seu ponto de vista. Ele quer flexibilizar a quarentena quanto antes, para tentar reabrir as atividades no país, na contramão do que vem fazendo a esmagadora maioria do planeta e contrariando as orientações da Organização Mundial da Saúde. Nos últimos dias, o número de infectados e de mortos começou a bater recordes por aqui e a “solução” de relaxar o isolamento social pode provocar uma catástrofe ainda maior, até mesmo na economia. Nada disso é capaz de mudar a opinião do capitão em relação ao problema. Na terça 14, em reunião ministerial, Bolsonaro disse a integrantes do gabinete que é o presidente da República e, portanto, está no comando das medidas e soluções no combate ao coronavírus. Falta, no entanto, combinar com a Justiça. Sua autoridade para encerrar a quarentena no país virou um debate jurídico e, até o momento, ele coleciona derrotas nesse campo.
O último revés ocorreu na quarta 15, quando o plenário do Supremo Tribunal Federal, de forma unânime, reiterou o entendimento do ministro Marco Aurélio Mello de que estados e municípios têm competência para adotar as atitudes que julgarem adequadas diante da crise sanitária. Antes disso, em outra ação, o ministro Alexandre de Moraes havia definido que ordens de isolamento não podem ser derrubadas pelo governo federal. A Advocacia-Geral da União recorreu dessa decisão. “O Brasil é o primeiro país do mundo em que medidas contra o coronavírus vão parar nos tribunais. É patético”, afirma o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, que esteve à frente do combate à epidemia de H1N1 que matou 2 098 pessoas no Brasil em 2009.
A polêmica criou tamanho clima de insegurança que começou a gerar conflitos entre municípios e estados. Em Santa Catarina, o governador Carlos Moisés (PSL) optou por relaxar a quarentena no estado, liberando o comércio. Avenidas de cidades importantes como Joinville e Chapecó ficaram lotadas, mas a capital, Florianópolis, adotou caminho inverso. O Poder Executivo local manteve as restrições em vigor e implementou medidas ainda mais drásticas: testará todos os passageiros que chegarem nos poucos voos disponíveis. Conflito semelhante ocorre em Mato Grosso, onde o governador Mauro Mendes (DEM) baixou um decreto para reabrir o comércio no estado. O prefeito de Cuiabá, Emanuel Pinheiro (MDB), foi à Justiça para garantir o direito de manter o isolamento social. Ganhou a ação e, agora, cogita implementar um toque de recolher em bairros que não respeitam as medidas.
A discussão não fica mais restrita às autoridades e chegou às ruas de algumas cidades na forma de passeatas e carreatas contra o isolamento social. Em São Paulo, um pequeno grupo fez barulho recentemente na Avenida Paulista, a principal do município, carregando um caixão para fazer o enterro simbólico do governador do estado que concentra o maior número de casos de coronavírus no país. Esse protesto ocorreu após João Doria (PSDB) dizer que poderia usar a força policial para obrigar as pessoas a respeitar as medidas protetivas. O tucano diminuiu o tom do discurso no início da semana, após sua equipe de comunicação constatar que ele havia exagerado na dose, o que poderia ser benéfico a Bolsonaro, com quem vem trocando duras críticas sobre a melhor forma de combater a pandemia. O presidente já acusou Doria de forçar a quarentena para fragilizar a economia do país e atrapalhar seus planos de reeleição. A divergência chega até a detalhes de ações, como o uso de geolocalização de operadoras de celular para ajudar a monitorar com mais precisão o nível de isolamento da população. Doria utiliza o sistema desde o início de abril e anunciou que pretende ampliar sua abrangência. Algo semelhante seria adotado no governo federal, mas Bolsonaro vetou o projeto. Em outros estados, governadores deram de ombros para o corpo técnico das suas administrações e cederam às pressões externas. Após se reunir com o presidente, o governador mineiro Romeu Zema (Novo) gravou um vídeo dizendo que o “vírus precisa circular” e admitiu que poderá flexibilizar a quarentena. Políticos locais afirmam que Zema tem sofrido pressões de empresários para ordenar a reabertura do comércio. O prefeito da capital, Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), avisou que não vai seguir a orientação. “De que adianta você se eleger dizendo que indicará um secretariado técnico se, na hora em que precisa usá-lo, você ignora o que ele tem a dizer?”, indaga.
A indevida politização do tema alcançou tal nível que chegou a dar margem a discursos demagógicos. Exemplo disso é a postura do deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que virou um dos principais conselheiros do presidente na área de saúde e, não por acaso, também defensor ferrenho do fim do isolamento social a ponto de declarar há alguns dias que a pandemia estava perto do fim no Brasil (um absurdo completo). “Quarentena só vale para a classe média, que tem geladeira cheia e dinheiro no banco”, afirmou. “Os pobres estão muito mais preocupados com a fome do que com o vírus.” Falas desse tipo espalham confusão no momento em que o país precisa concentrar esforços para reduzir o ritmo de propagação da doença — o que exige isolamento social. “No fim de março, tivemos um movimento de pessoas ficando em casa. Mas aí o Bolsonaro discursou na TV e percebemos que, logo no dia seguinte, o comércio voltou a abrir e aumentou o número de pessoas nas ruas. O que a gente vê agora é até mais aglomeração do que antes”, diz Gilson Rodrigues, líder comunitário de Paraisópolis, uma das maiores favelas de São Paulo.
Enquanto as divisões vão chegando às ruas, a discussão jurídica sobre a quarentena prossegue. Augusto Aras, o procurador-geral da República, manifestou-se a favor de Bolsonaro decidir qual é o “momento oportuno” de ampliar ou diminuir o isolamento social, mas disse ser contrário à ação do presidente de intervir nas escolhas de governadores e prefeitos. Contorcionismos à parte, alguns especialistas enxergam que o debate em torno do tema pode ensinar o país a viver de uma vez por todas em um Estado federativo, ainda que isso ocorra a duras penas, em meio a uma gravíssima crise sanitária. “As competências se distribuem”, diz o ex-ministro do STF Carlos Velloso. “O presidente não é imperador nem os estados podem tudo. Para coibir os excessos é que existe o Judiciário.” Até o momento, felizmente, a Justiça tem arbitrado a favor da razão no caso dos conflitos do coronavírus. O isolamento é importante, e o Brasil não pode mais perder tempo nos tribunais para decidir o caminho óbvio e necessário.
Publicado em VEJA de 22 de abril de 2020, edição nº 2683