Em maio de 2021, a dezessete meses das eleições, o Tribunal Superior Eleitoral recebeu a primeira ação contra campanha antecipada referente à disputa presidencial de 2022. O PCdoB acusou Jair Bolsonaro (PL) de fazer discurso eleitoral durante um evento oficial em Açailândia (MA), onde na véspera haviam sido instalados outdoors em apoio ao presidente. No mês seguinte, chegou a segunda ação: a Procuradoria-Geral Eleitoral pediu a condenação do mandatário por exibir em Marabá (PA) uma camiseta com os dizeres “Bolsonaro 2022”, o que, para o órgão, teve “conotação eleitoral evidente”. Desde então, o TSE já acumula treze ações por campanha antecipada contra presidenciáveis. Nos tribunais do país há pelo menos 27 ações por campanha extemporânea em geral, ilícito cuja pena prevista é branda — multa de 5 000 a 25 000 reais. O cenário deixa evidente que, extraoficialmente, os políticos já estão trabalhando na rua há muito tempo. E isso, claro, vai antecipar o calendário de confusões.
O clima esquentou de vez no último fim de semana, quando o partido de Bolsonaro acionou o TSE contra as manifestações das cantoras Pabllo Vittar e Marina no festival Lollapalooza, em São Paulo — a primeira ergueu uma toalha com o rosto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), enquanto a cantora britânica xingou o atual ocupante do Planalto. Numa decisão que representou um ponto fora da curva no TSE, o ministro substituto Raul Araújo mandou a organização vetar manifestações de artistas com teor político — o que, é claro, mostrou-se inviável e resultou em mais manifestações no dia seguinte. O presidente do TSE, Edson Fachin, prometeu levar o caso ao plenário e expressou o seu desconforto com a decisão amalucada. “A posição do tribunal será a decisão majoritária da Corte, cujo histórico é o da defesa intransigente da liberdade de expressão”, disse. Antes disso, porém, diante da saraivada de críticas, o próprio Araújo arquivou o caso, em cima de pedido do PL, que desistiu da ação depois da péssima repercussão. Curiosamente, ao mesmo tempo que rolava o Lollapalooza, Bolsonaro promovia em Brasília um ato de lançamento de sua pré-candidatura, algo não previsto na lei — o PL mudou o foco para “evento de filiação” depois que a equipe jurídica da sigla alertou para os riscos. Mesmo assim, houve protestos da oposição. Os dois episódios foram uma amostra do que está por vir neste ano eleitoral, até agora marcado pelo clima de extrema polarização.
Há vários motivos que explicam a sensação de que a campanha, cujo início oficial será no dia 16 de agosto, já está por todo lado. A bagunça se tornou possível devido a mudanças na legislação feitas a partir de 2015. O Congresso reduziu drasticamente o tempo de campanha oficial, de noventa para 45 dias, mas flexibilizou de tal forma as regras para a pré-campanha que praticamente tudo passou a ser permitido, exceto pedir votos expressamente. A ideia das normas anteriores, mais restritivas, era evitar abuso do poder político e econômico. Cabia, então, ao Judiciário arbitrar. A pretexto de combater a subjetividade de interpretação das leis nesse período, foram feitas as mudanças. De acordo com o advogado Sidney Neves, consultor da Comissão de Direito Eleitoral da OAB, o movimento representou uma reação do Legislativo ao Supremo Tribunal Federal, que havia acabado de proibir que empresas privadas doassem dinheiro para as campanhas. “Como resposta, os parlamentares tiraram do TSE a margem de tutela, de regulação do processo político”, diz. Agora, como mostram as recentes confusões, fica claro que o tiro saiu pela culatra: na atual era do vale-tudo, o volume de queixas vem aumentando e elas fatalmente acabam parando no TSE.
Outro elemento que contribuiu para a antecipação das campanhas foi a volta da propaganda partidária no horário nobre da TV no primeiro semestre (ela havia sido extinta em 2017). Mais do que divulgar suas ideias, os partidos têm aproveitado as inserções na TV aberta para apresentar seus candidatos a presidente, como fizeram até agora Lula, Ciro Gomes (PDT), Sergio Moro (Podemos) e Simone Tebet (MDB), apesar de a norma vetar que as propagandas sirvam para “promoção de pretensa candidatura, ainda que sem pedido explícito de voto”. As inserções do PL de Bolsonaro estão programadas para junho.
Contribui também para a campanha precoce a infinidade de redes sociais à disposição dos candidatos — na eleição de 2018, apenas o Facebook e o WhatsApp tinham relevância eleitoral. No campo da internet, aliás, o TSE inovou em uma das resoluções que trazem as normas para as eleições deste ano, admitindo pela primeira vez que, no período de pré-campanha, os pretensos candidatos — que só serão formalizados nas convenções partidárias, de 20 de julho a 5 de agosto — façam o impulsionamento de conteúdo nas redes sociais, “desde que não haja pedido explícito de votos e que seja respeitada a moderação de gastos”. O problema, segundo Marcelo Vitorino, especialista em marketing político e professor da ESPM, é que não existe critério para que as campanhas saibam quanto podem gastar com esse impulsionamento. “Há um temor dos candidatos de, lá na frente, responderem a ações por abuso de poder econômico”, diz. Não há informação de quanto os presidenciáveis estão investindo em impulsionamento de mensagens. Já para o Ministério Público, o problema é outro: não há como fiscalizar abusos, devido à grande variedade de plataformas existentes e o tamanho de seu alcance — o Telegram, por exemplo, tem canais com mais de 1 milhão de inscritos.
Dentro do campo político, um dos efeitos da batalha eleitoral antecipada é que ela leva à cristalização das intenções de voto muito mais cedo, segundo o cientista político Cláudio Couto, da FGV. A mais recente pesquisa Datafolha, feita em 22 e 23 de março, mostra que 67% dos eleitores dizem já estar totalmente decididos sobre em quem votar, ante 32% que afirmam que ainda podem mudar de candidato. “Isso produz uma alteração na forma como o debate vai se dar. O eleitor fica menos aberto a alternativas. Não há dúvidas de que esse é um dos fatores que dificultam o crescimento de uma terceira via”, diz Couto.
Bolsonaro, por exemplo, faz campanha praticamente desde o início do mandato — em 2020, o Ministério Público já estudava processá-lo por causa de outdoors instalados em estados como Bahia e Mato Grosso. Lula também está na caça ao voto desde que foi reabilitado eleitoralmente pelo STF, em março de 2021. A partir dali, passou a cumprir agendas públicas, tem falado em voltar ao poder e apresentado ideias para um eventual governo. Foi também a partir da decisão do Supremo a favor do petista que Bolsonaro radicalizou seus discursos de viés eleitoral, virando alvo das primeiras ações no TSE, e intensificou pelo país a agenda de motociatas, que claramente têm apelo eleitoral. Segundo o último Datafolha, Lula tem 43% das intenções de voto, e Bolsonaro, 26%.
Há, ainda, um outro componente que deve agravar o clima de vale-tudo: a fartura de dinheiro. Ao mesmo tempo que as leis eleitorais foram afrouxadas, o Congresso decidiu injetar no financiamento das campanhas de 2022 o maior volume de dinheiro público da história: 4,9 bilhões de reais. Considerando a disposição dos políticos para elevar o volume da briga, não deverão faltar nos próximos meses embates como os do último fim de semana. O estopim da guerra foi aceso de forma precoce e a batalha só tende a esquentar ainda mais.
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783