Explosão de mentiras na eleição amplia debate sobre combate às fake news
Levantamento mostra aumento em 373% das mensagens falsas envolvendo Bolsonaro e Lula no WhatsApp. Fica a dúvida: há como enfrentar esse mal?
Para onde quer que se vire, a constatação é unânime: nunca na história das eleições se inventou e se espalhou tanta informação falsa quanto nestes dias que precederam o segundo turno. Ao longo do mês de outubro, bastava piscar para aparecer, primeiro nas redes sociais e depois em toda parte, inverdades lastreadas em falas fora de contexto, vídeos antigos manipulados para parecer o que não são, fotos adulteradas com a desfaçatez do regime stalinista, manchetes fraudadas de notícias que nunca ocorreram, teorias conspiratórias insanas tratadas como verdades absolutas. Pior: postou, está feito o estrago. Tentar apagar fake news é medida de efeito limitado, porque até ela ser posta em prática a falsidade já foi compartilhada freneticamente por milhares, às vezes milhões de pessoas. Com as campanhas firmemente plantadas na internet, Jair Bolsonaro, principalmente, e Luiz Inácio Lula da Silva, em medida maior do que nunca, enveredaram pelo perigoso — e ilegal — caminho da manipulação dos fatos como se não houvesse amanhã. Fica a dúvida: existe maneira de combater com eficiência a disseminação de fake news?
Confira a apuração do resultado do segundo turno das eleições 2022
Um levantamento da Palver, empresa que monitora cerca de 15 000 grupos dedicados à discussão política no WhatsApp, mostra que as mensagens falsas envolvendo os dois candidatos cresceram 373% nas três semanas seguintes ao 2 de outubro. Mais grave ainda, o nível das denúncias descambou para a baixaria, e a rapidez com que foram produzidas indica que as duas partes se prepararam para a guerra suja. “No primeiro turno, as mensagens questionavam se Bolsonaro era o pai do Pix e se Lula iria reverter a autonomia do Banco Central. Depois, passaram para pedofilia e ocultismo, o que demonstra que as notícias falsas escalaram para o nível da escatologia”, confirma Alexandre Pacheco da Silva, um dos coordenadores do Observatório Desinformação Online, criado pelo curso de direito da FGV.
Diante da fúria desinformativa, o Tribunal Superior Eleitoral, sob o comando de Alexandre de Moraes, virou um campo de batalha. Cerca de 550 ações envolvendo fake news foram encaminhadas à apreciação do TSE — 200 de Lula e 124 de Bolsonaro. O tribunal ordenou um sem-número de remoções de postagens. Adianta? Em parte. No mínimo, a Justiça mostra serviço e a pecha de mentiroso cola em um e outro, conforme as decisões vão sendo anunciadas. Mas esse tipo de reação ainda está longe de conseguir reverter o lamaçal de mentiras nas redes, nos podcasts, em entrevistas e nos debates.
Coibir mentiras é certamente dever da Justiça Eleitoral, para impedir que elas contaminem as eleições. Ao apertar o cerco contra as máquinas de fake news, porém, o TSE contraria um dos princípios que o norteiam: o de interferir o mínimo possível no pleito. Uma resolução recente amplia ainda mais os poderes do tribunal, ao autorizar ministros a retirar do ar conteúdos que o plenário já tenha julgado e condenado e que sejam replicados em novos endereços eletrônicos. A medida pode resvalar em censura e como tal foi criticada em certos círculos jurídicos. “Considerando nossa tradição, é mesmo possível que haja censura aos meios tradicionais de comunicação na aplicação da norma”, diz Flávio de Leão Bastos, professor de direito eleitoral da Universidade Mackenzie. Equilibrar-se no fio entre combate saudável e cerceamento impróprio é um dos muitos desafios nas tentativas de controlar as fake news.
Espalhar mentiras deslavadas não é um fenômeno eleitoral, muito menos brasileiro. Inventar notícias foi um vírus que debilitou o combate à pandemia de Covid-19 em todas as partes do mundo e o mote de maluquices e memes por ocasião do falecimento de Elizabeth II, em setembro (uma foto adulterada mostrava a duquesa Meghan usando camiseta com a frase “A rainha morreu”), por exemplo. Mas as votações são talvez o terreno mais propício para sua propagação. Na que elegeu Donald Trump para a Casa Branca, em 2016, um estudo contabilizou 38 milhões de compartilhamentos e 760 milhões de cliques em informação falsa. Outra pesquisa, dois anos depois, comprovou que mentiras têm 70% mais risco de ser retuitadas do que verdades. Nos Estados Unidos, onde liberdade de expressão é um direito constitucional inabalável — o que, sim, inclui a liberdade de falar mentira —, a única restrição legal existente é à disseminação do chamado “discurso de ódio”.
Em outros países, porém, alguns passos vêm sendo dados. A União Europeia aprovou neste ano uma Lei de Serviços Digitais que exige que as plataformas identifiquem e removam desinformação e as obriga a prever os danos que podem causar com a disseminação maciça de certos conteúdos. “É uma tentativa de chegar ao detalhe dos algoritmos e discutir como eles funcionam. O foco são os direitos humanos”, explica Francisco Brito Cruz, do InternetLab. No Reino Unido, uma divisão do governo dedicada a caçar e eliminar notícias falsas adota um processo de quatro fases: achar, avaliar, criar e mirar. O objetivo é reagir rapidamente, postando nos mesmos canais o desmentido e a informação verdadeira. A luta é inglória: de sete posts rebatidos por semana na época da votação do Brexit — outra campanha movida a fake news —, a equipe, devidamente ampliada, tem de lidar agora com centenas de mensagens falsas semanais.
A tática de responder postando os devidos esclarecimentos tem sido usada por governos e empresas com algum sucesso, embora exija confiança nas instituições — artigo raro hoje em dia — e pouco influa em grupos de conversa de WhatsApp, por exemplo. Outra medida em vigor nos Estados Unidos e na Europa é debater e combater a disseminação de mentiras nas escolas, pondo no currículo a “alfabetização em mídias”. Richard Hasen, autor de Discurso Barato: Como a Desinformação Envenena a Política, propõe que a educação básica se estenda aos idosos — “os mais propensos a disseminar falsidades”. Nem sempre funciona.
Na disposição de combater o bom combate, o mais importante é perseverar, costuma recomendar Marcus Beard, um dos fundadores da comissão contra fake news do governo britânico. Sua receita: “Seja sistemático. Selecione suas ferramentas de monitoramento. Decida com rapidez. Não espere que a desinformação apareça”. Bebendo de outras experiências, e criando estratégias próprias, quem sabe algum dia se consiga controlar a praga universal das fake news. Enquanto isso não acontece, resta ao eleitor brasileiro buscar fontes confiáveis para tomar sua decisão no dia 30. Essa é uma verdade incontestável.
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813