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Governo Bolsonaro engole insultos do passado e cede à China

Acuado pela dependência do país asiático, o governo muda o discurso e se vê obrigado a fazer concessões

Por Josette Goulart, Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Luisa Purchio Atualizado em 4 jun 2024, 13h53 - Publicado em 5 fev 2021, 06h00

Muito antes de existir o Brasil como nação, muito antes do italiano Maquiavel (1469-1527) introduzir o realismo na filosofia política do Ocidente, a China já produzia pensadores que tratavam de como governantes deveriam lidar com o próprio povo e outras nações. É o caso do lendário Sun Tzu, de A Arte da Guerra, e Han Fei, principal nome da escola legalista. Uma das premissas das ideias desse último consistia em que o governante não deveria expor abertamente os seus pensamentos. A paciência também era defendida como um valor nas negociações. O Brasil recebeu uma amostra dessa milenar tradição recentemente. Os dois anos de gestão de Jair Bolsonaro foram pródigos em ofensas dirigidas ao governo chinês, por meio de declarações e tuítes do próprio presidente, de seus filhos e de ministros da chamada ala ideológica, alheios ao fato de que nunca o país foi tão dependente da China, uma das grandes potências do planeta.

Na maior parte das vezes, os diplomatas chineses evitaram conflitos diretos e aguardaram pelo momento que poderiam agir de forma decisiva. Esse momento chegou. Além de o Brasil ter na China o maior destino de suas exportações — 32% do total em 2020, um recorde, muito acima dos 25% que os Estados Unidos atingiram na década de 90 —, agora precisa de vacinas e matérias-primas feitas no país asiático para imunizar os brasileiros contra a Covid-19. De quebra, não pode mais contar com o respaldo dos americanos em sua conduta hostil aos chineses, depois da derrota de Donald Trump à reeleição, ao qual Bolsonaro e o chanceler, Ernesto Araújo, gostavam de emular e se alinhavam ideologicamente. “Os chineses sabem exatamente o que estão fazendo, eles calculam o timing, o processo é todo direcionado”, afirma Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior. “Sabem exatamente quando apertar o Brasil e quando é o momento de fazer um gesto favorável. Agora, fizeram um gesto favorável, e a conta está a caminho.”

Arte Bolsonaro

No caso, o gesto favorável foi garantir a entrega de insumos para a fabricação de 8,6 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac no Instituto Butantan. O voo chegou na noite da quarta-feira 3, depois de semanas de negociações. Quando o acordo foi fechado, Bolsonaro publicou em suas redes sociais a mensagem “Agradeço a sensibilidade do governo chinês”, junto com uma foto em que ele entregava ao presidente chinês, Xi Jinping, um blusão do Flamengo. Representava uma notável mudança de postura quanto a declarações anteriores, como quando afirmou que o Brasil compraria vacinas desenvolvidas pela Astra­Zeneca em parceria com Oxford, e não “daquele outro país”.

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A conta começou a ser paga rapidamente. Seis dias antes da chegada das matérias-primas, o governo brasileiro publicou no Diário Oficial portaria com as regras para o leilão de frequências para operar a telefonia 5G no Brasil, tema de imenso interesse para a China (no Brasil e no mundo). O texto indicava que não haveria restrições para as operadoras brasileiras instalarem equipamentos da chinesa Huawei em suas redes da nova geração, uma mudança radical de posicionamento do governo brasileiro, que era ferozmente contra a participação da empresa. Em novembro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que no início da pandemia tratava o novo coronavírus como criação do Partido Comunista Chinês (PCC), havia afirmado que os chineses usariam o 5G para espionagem. O próprio presidente chegou a instruir seus ministros a evitarem o embaixador do país asiático no Brasil, Yang Wanming, que respondera duramente às provocações de Eduardo. Paralelamente, o Palácio do Planalto levava a crer que dificilmente uma decisão sobre o assunto seria tomada ainda em 2021.

Na semana passada, o jogo havia virado de tal forma que o próprio ministro das Comunicações, Fábio Faria, partiu, na terça 2, em viagem para cinco países em que o modelo de operação de 5G está em adiantado estágio, entre eles a própria China. A missão inclui ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), para que possam conhecer os fornecedores e encurtar o processo licitatório em noventa dias.

DIPLOMACIA - Em foco Wanming com Araújo (acima) e Tereza Cristina (abaixo): a ministra entrou nas negociações e o chanceler foi escanteado -
DIPLOMACIA – Em foco Wanming com Araújo (acima) e Tereza Cristina (abaixo): a ministra entrou nas negociações e o chanceler foi escanteado – (Mateus Bonomi/AFP/MAPA/Divulgação)

Além da questão do 5G, outras pautas chinesas que chamam menos atenção podem avançar. O país asiático pretende utilizar o momento favorável para conseguir a redução de tarifas, a retirada de medidas antidumping contra seus produtos e até a flexibilização de compra de terras por estrangeiros — tema que desagrada a Bolsonaro, mas que tem no novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, um defensor. Ele é relator de um projeto de lei aprovado na Casa em dezembro. Mesmo que tudo isso não ocorra, a vitória diplomática dos asiáticos já pôde ser medida pelo beija-mão aos chineses em Brasília. Para conseguir a liberação das vacinas, Bolsonaro foi aconselhado a nomear uma espécie de diplomacia paralela. Ao considerar que a batalha política quanto à necessidade da vacina chinesa já havia sido perdida para o governador João Doria (PSDB) — que fechou a parceria entre a Sinovac e o Butantan —, a estratégia de contenção de danos foi deixar de lado o pugilato verbal das redes sociais e alijar o chanceler Ernesto Araújo das conversas. Em seu lugar, entrou Tereza Cristina, titular da pasta da Agricultura, além do próprio Fábio Faria. A ministra negociou diretamente com o embaixador chinês e utilizou contatos com empresas de trading que atuam no país asiático. “Já tínhamos um diálogo estabelecido com essas autoridades, então, juntamos forças”, diz a assessora especial da ministra para assuntos relacionados à China, Larissa Wachholz.

No último dia 20, uma romaria de políticos e ministros bolsonaristas foi à Embaixada da China assegurar que não haveria veto à Huawei. Também reforçou-se que a empresa segue como potencial parceira do programa de inteligência artificial do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações — das vinte propostas recebidas, os chineses devem participar de quatro, que implicam investimentos diretos no setor. Nesse circuito diplomático alternativo, entrou até o ex-presidente Michel Temer. Contratado pela Huawei para elaborar um parecer jurídico sobre a sua participação no 5G, ele mantém boas relações com todos os lados da negociação. Hoje próximo de Bolsonaro, Temer tem bom trânsito com o ex-embaixador chinês no Brasil durante seu governo, Li Jinzhang, e conhece o todo-poderoso Xi Jinping desde os anos 1990. Na época, ele era presidente da Câmara e, em uma visita de Jinping ao Brasil, então um simples membro do PCC, tratou de recebê-lo com tapete vermelho no Congresso, uma deferência que impressionou o atual líder. Ao medir forças de forma juvenil com o dragão asiático, o governo Bolsonaro acabou chamuscado e teve que recuar. Afinal de contas, não se deve brincar com fogo.

Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724

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