Governo Bolsonaro faz aposta eleitoreira na mistura de política e religião
A defesa dos interesses da Universal em Angola — uma violação à Constituição — é o exemplo mais recente da aproximação Igreja-Estado no Brasil
Uma das grandes conquistas no desenvolvimento do mundo ocidental, a separação entre Igreja e Estado é de uma engenhosidade sofisticada por preservar ao mesmo tempo as duas instituições: garante a liberdade religiosa e evita que um credo tenha privilégios públicos. No Brasil, essa barreira foi erguida a partir da Proclamação da República e a posição acabou sendo ratificada por todas as constituintes a partir de 1891. Em mais um dos muitos retrocessos promovidos na era Bolsonaro, ocorre agora no país um perigoso ataque a esse muro civilizatório. Nenhum outro presidente misturou tanto religião e Estado quanto o atual — algo, aliás, expressamente proibido pela Carta Magna. No exemplo mais recente da confusão, em meio à conferência de chefes de Estado de países de língua portuguesa, em Angola, o vice-presidente Hamilton Mourão gerou desconforto ao tratar na missão paga pelos cofres públicos brasileiros de assuntos particulares da Igreja Universal. Sob pressão de sua base política-evangélica, Bolsonaro pautou-o para tentar interceder na crise que tirou da instituição criada pelo bispo Edir Macedo o controle de centenas de templos naquela nação africana.
Tal pecado diplomático ficou claro diante da firme posição de Angola de não misturar as coisas. O presidente do país, João Lourenço, sempre tentou manter distância do problema da Universal por entender que não é uma questão de Estado. Ele nunca se pronunciou publicamente sobre o caso, que hoje é investigado pela PGR de lá por denúncias de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e discriminação racial. “Trata-se de uma igreja e não de uma empresa multinacional na qual o Estado brasileiro tenha algum interesse”, disse a VEJA o pastor Jimi Inácio, porta-voz da dissidência local que hoje comanda os mais de 200 templos da Universal no país e é reconhecida pelas autoridades locais. Angola foi o primeiro país da África onde a igreja fincou bandeira, em 1992, mas na África do Sul ela tem mais templos, cerca de 300. Não à toa, Bolsonaro indicou o ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, para a embaixada do país mais desenvolvido do continente. A decisão — mais uma em que o presidente coloca os interesses da igreja acima dos da nação — ainda precisa ser aprovada pelo Senado.
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O espírito por trás da desastrada ação do vice-presidente em Angola faz parte de uma política de um governo que adotou desde a posse o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Essa enorme e perigosa confusão entre Igreja e Estado é visível em várias frentes da gestão Bolsonaro. Outro exemplo recente é a escolha de um ministro “terrivelmente evangélico” ao Supremo Tribunal Federal. Ela acaba de ser concretizada, com a indicação do nome do advogado-geral da União e ex-ministro da Justiça André Mendonça. Mas, como se sabe, o que pesou mesmo na decisão foi o título de pastor presbiteriano (algo que desmerece o próprio Mendonça, dono de um ótimo currículo para o cargo). O primeiro escalão do presidente tem ainda pastores na Educação (Milton Ribeiro, presbiteriano, como Mendonça), e na pasta que trata de Mulher, Família e Direitos Humanos, com Damares Alves, que já ministrou cultos na Igreja do Evangelho Quadrangular e na Igreja Batista da Lagoinha. Em poucos meses no cargo, em uma única entrevista, Ribeiro foi capaz de associar a homossexualidade a “famílias desajustadas” e educação sexual em escolas a “erotização das crianças”. No ano passado, assessores de Damares foram enviados ao Espírito Santo para acompanhar de perto o caso de uma menina capixaba de 10 anos que ficou grávida após ter sido estuprada por um tio. A presença deles ali foi interpretada como uma forma de pressão de Damares para evitar a realização de um aborto legal (algo que a ministra nega). “Em governos anteriores, se um presidente se dizia cristão, isso interferia na política dele relativamente pouco”, diz Renato Janine Ribeiro, ministro da Educação no governo Dilma Rousseff e recém-eleito presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Agora, a ingerência é constante. A imposição de determinadas agendas ou de uma visão de mundo de acordo com a fé é nítida, com prejuízos ao país em diferentes níveis. Entre outras coisas, impede discussões racionais sobre temas como aborto e drogas (questões que deveriam ser tratas apenas no âmbito das políticas de saúde) e respinga até em temas como a possível legalização de cassinos (hipótese demonizada pelos evangélicos). Não raro, as instituições precisam reagir duramente para conter as tentativas de interferência religiosa. Durante a pandemia, já em sinal de alinhamento estreito com o Palácio do Planato, Mendonça, à frente da AGU, defendeu no STF a reabertura de templos religiosos citando três trechos da Bíblia. Perdeu a ação e acabou sendo ironizado por Gilmar Mendes: “Parece ter vindo de Marte”, disse o ministro. Na verdade, em sua recente campanha pela indicação ao STF, Mendonça deixou claro que deseja estar mesmo mais próximo do Reino dos Céus. Segundo a pregação neopentecostal, o movimento de elevação deve começar a ser implementado no tempo presente. Em fevereiro, em visita à gigantesca Assembleia de Deus Ministério do Belém, em São Paulo, ele seguiu o preceito, discursando no púlpito que “se tem um cargo que é importante, é o de ministro do Evangelho”.
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Não foi por acaso o movimento de indicação ao STF de um ministro com o perfil dele. Com a ascensão evangélica entre a população brasileira nas últimas décadas (projeções indicam que esse segmento deverá ultrapassar o dos católicos até 2032), as lideranças dessa corrente, sobretudo entre as poderosas neopentecostais, passaram a ser recebidas com frequência no Palácio do Planalto, o que aconteceu nos governos de FHC, Lula, Dilma e Temer. Bolsonaro, no entanto, alçou-os ao posto de conselheiros. Eles dão palpites sobre diversas áreas da República, da economia à saúde. “O presidente incorpora boa parte dos fundamentos que estruturam a ação dos grupos evangélicos, como tratar meios de comunicação como nocivos ou o negacionismo científico”, afirma o cientista político Luís Gustavo Teixeira da Silva, professor da Universidade Federal de Pelotas e estudioso da laicidade do Estado. Curiosamente, essa forte ligação atual de Bolsonaro com o mundo evangélico não é muito antiga. Em 2016, ele foi batizado nas águas do Rio Jordão, em Israel, por Everaldo Pereira (no ano passado, o pastor e deputado foi preso sob a suspeita de ser um dos líderes de esquemas de corrupção durante o governo de Wilson Witzel). Desde a conversão, o presidente vem aprofundando o proselitismo. Há dois anos, tornou-se o primeiro mandatário da nação a ir a uma Marcha para Jesus, onde foi apresentado como “homem de Deus”. E, nos últimos meses, em que viu a sua popularidade cair, intensificou a agenda em cultos e missas — que passaram a ser até transmitidos ao vivo pela TV pública.
A comutação de Bolsonaro acompanha o fenômeno da multiplicação evangélica no país e o consequente crescimento da representação política dessa fé no Congresso. A bancada evangélica passou de 27 deputados na eleição de 1994 a 85 em 2018. Oficialmente, a Frente Parlamentar Evangélica ainda tem a assinatura de 195 deputados — além dos evangélicos, a turma inclui católicos e simpatizantes. Essa representação possibilitou barrar propostas que já avançaram há tempos em outros países, como a descriminalização do aborto, fora o excesso de energia gasto em reuniões e comissões só para discutir questões como banheiros unissex nas escolas. Parlamentares do grupo também têm como prioridades conseguir concessões de rádio, liberação de alvarás de templo, perdão de dívidas milionárias e isenção fiscal. “O ingresso maciço de evangélicos na política decorreu de uma instrumentalização mútua: as igrejas tentando instrumentalizar a política, partidos e Estado em interesse próprio, enquanto partidos, candidatos e governantes passaram a demandar apoio das bancadas evangélicas e dos pastores no período eleitoral”, diz o sociólogo Ricardo Mariano, professor da USP e autor do livro Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil.
Hoje, com muito mais penetração do que os católicos na classe mais pobre da sociedade, em que muitas vezes o Estado não está presente, as igrejas evangélicas ainda desempenham um papel importante no conforto espiritual e até mesmo material dos moradores dessas comunidades. “O político que não entender a força que a igreja tem e quanto ela ajuda a sociedade com certeza sairá perdendo na eleição e já nasce morto na campanha”, diz o pastor Luciano Luna, que é coordenador de assuntos religiosos do PSDB-SP e já participou de mais de seis campanhas fazendo o meio de campo entre políticos e líderes religiosos. Funções como a de Luna passaram a ser regra dentro dos partidos políticos, da esquerda à direita. Exemplos não faltam: o ex-presidente Lula (PT) estuda preparar uma “carta aos evangélicos” no mesmo molde da célebre Carta ao Povo Brasileiro, de 2002; o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) lançou vídeos comparando a Bíblia à Constituição; e o governador João Doria (PSDB) já planeja visitar os templos assim que terminar as prévias do PSDB para definir o candidato do partido à disputa presidencial de 2022. Para o cientista político Claudio Couto, da Fundação Getulio Vargas, o voto evangélico é mais importante que o de outras religiões, como a católica, porque os fiéis se comportam como irmãos na fé também ao votar: “Muitos evangélicos não o são apenas no dia de culto e nas condutas, mas também nas dimensões que na sociedade são externas à religião, como a política”.
Esse tipo de participação, evidentemente, é legítimo, mas vira um problema quando se transforma em um poder que passa a influenciar as instituições. Em sociedades abertas e modernas, questões de foro íntimo, a exemplo da religião, não devem balizar o debate político e muito menos as políticas públicas, como ocorre no Brasil da atualidade. “Quando se pretende impor um tipo de concepção específica, se acaba por reduzir a liberdade das pessoas e a limitar o pluralismo dessa sociedade”, diz Couto, da FGV. Considerado o pregador mais influente dos Estados Unidos, o pastor Billy Graham sintetizou os riscos de misturar Igreja com Estado em circunstâncias como a que enfrentamos hoje por aqui. “Me incomodaria que houvesse casamento entre o fundamentalismo religioso e a direita política. A extrema direita não tem interesse na religião, exceto para manipulá-la”, disse Graham em 1981.
Em sociedades completamente laicas, questões privadas como a sexualidade também não deveriam pautar o debate político. Em um ambiente contaminado pelo extremismo, no entanto, políticos como o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), pré-candidato à Presidência que se declarou gay em uma entrevista recente, podem trazer o assunto à baila até como modo de evitar ataques futuros. “Se vai ter algum tipo de consequência política, é difícil dizer. O timing para a declaração dele foi propício, mas o eleitorado brasileiro também é muito conservador, sobretudo do campo do Eduardo Leite, e pode ser que o saldo seja negativo”, afirma Gustavo Gomes da Costa, professor de sociologia da UFPE e pesquisador da participação LGBT na política institucional.
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No Brasil, ironicamente, a laicidade do Estado foi amplamente defendida pelo segmento evangélico na época da Constituinte — isso porque se temia que o catolicismo voltasse a ser considerado religião oficial do país. Apesar de o Brasil ainda estar distante de regimes teocráticos, como os do Irã e Afeganistão, onde os cristãos evangélicos chegam a ser perseguidos, é importante permanecer vigilante sobre qualquer ameaça de fusão entre estado e religião. “A separação entre Igreja e Estado garante que pessoas muito diferentes possam conviver bem socialmente. A democracia exige a laicidade do Estado”, diz Renato Janine Ribeiro. A pastora luterana Romi Bencke, que junto com outras lideranças religiosas assinou um pedido de impeachment contra o presidente neste ano, entende que a atitude de Bolsonaro agravou um problema já existente. “Na minha opinião, a ideia democrática de laicidade não foi compreendida no país. Basta ver que algumas políticas, principalmente as reivindicadas pelos movimentos de mulheres, sempre foram medidas com a régua religiosa doutrinária dogmática, o que não deveria acontecer”, observa a pastora.
A influência protestante no mundo político não é nenhuma novidade no mundo. E ela foi fundamental em momentos-chave da história, como no movimento abolicionista da Inglaterra e na campanha dos direitos civis nos Estados Unidos liderada pelo pastor batista Martin Luther King. Na Alemanha, um dos países que mais leva a sério a laicização do Estado, a premiê Angela Merkel pertence ao partido União Democrata Cristã. O perigo, no entanto, se manifesta quando a fé passa a ser manipulada pelos políticos de acordo com os seus interesses, seja para criar inimigos a ser eliminados (o mal) ou para blindar de críticas os seus representantes tidos como ungidos divinos. Aliás, o termo “fundamentalismo”, que é usado para definir as teocracias islâmicas da atualidade, nasceu de um grupo de protestantes americanos do começo do século XX, que pregava uma sociedade baseada nas regras bíblicas contra a ameaça “modernista” e tinha como base o livro intitulado The Fundamentals. Felizmente, o Brasil encontra-se longe das teocracias, mas os casos extremos mostram o risco de se aprofundar a mistura de religião com Estado. O país não precisa de ministros terrivelmente evangélicos — precisa, sim, de homens públicos eficientes, honestos e de bom senso, independentemente de sua fé.
Com reportagem de Caíque Alencar
Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748