A relação mais próxima de Luiz Inácio Lula da Silva com o Congresso teve início em 1987, quando ele foi eleito deputado federal. Fez parte do grupo que elaborou a Constituição promulgada no ano seguinte, mas pouco se destacou em termos de projetos, não quis disputar um segundo mandato e saiu de lá classificando os ex-colegas de “uma maioria de uns 300 picaretas”, conforme declarou em 1993. Dez anos depois, ao chegar ao Palácio do Planalto, viu-se obrigado a sentar-se à mesa com os “300 picaretas”. Negociou tanto que isso culminou em 2005 na eclosão de um escândalo de compra de apoio de parlamentares, o famoso mensalão. O esquema abateu o homem forte do governo, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, e levou à condenação de outros petistas graúdos, mas não impediu Lula de ser reeleito e fazer a sucessora, Dilma Rousseff. A gestão feita também à base do toma lá dá cá com parlamentares ficou marcada por um escândalo ainda maior, o petrolão, que levou Lula à prisão e favoreceu o clima favorável ao impeachment.
Ao retornar ao poder, o petista prometeu promover um diálogo republicano com o Congresso e parecia realmente imbuído de não repetir os erros do passado. Depois de pouco mais de dois meses de governo, a tarefa se mostra mais difícil do que parecia, sobretudo no entendimento com o Centrão, que é fundamental para a necessidade do petista de formar uma base sólida para a aprovação de seus projetos. Lula reencontrou um Centrão cada vez mais unido e empoderado. Se não bastasse, o grupo hoje tem inclinações claramente liberais e conservadoras, perfil que se choca frontalmente com as convicções do petista.
De forma a tentar aplainar o terreno pantanoso onde já sabia que teria dificuldades de caminhar politicamente, o presidente procurou solidificar alianças na formação do governo “Lula 3”, ao anunciar um ministério incluindo partidos de centro como PSD, MDB e União Brasil, com três pastas cada. Os primeiros passos na relação entre Executivo e Legislativo até que foram promissores, quando o Congresso aprovou a chamada PEC da Transição, que abriu espaço fiscal de 145 bilhões de reais no teto de gastos para financiar o Bolsa Família e o aumento do salário mínimo, entre outros. Mas logo surgiram sinais indicando que, para fora dos aliados de sempre à esquerda, é porosa a coalizão de siglas na Câmara e no Senado — um retrato que não favorece as ambições legislativas do Palácio do Planalto. Na manhã da segunda 6, Arthur Lira (PP-AL), criticou a articulação do governo. Para o todo-poderoso mandachuva do Centrão, reeleito em fevereiro ao comando da Casa com votação recorde, de 464 votos, o Planalto “ainda não tem uma base consistente na Câmara e no Senado”. Vindo de quem veio, o alerta a Lula é eloquente.
Sob a ótica mais pragmática de alianças, o governo vem deixando pontos frouxos na tentativa de amarração política. Enquanto MDB e PSD têm dissidências, mas são considerados pelo governo como aliados, os maiores sinais de resistência a Lula têm vindo da bancada do União Brasil, que fez o terceiro maior número de deputados nas urnas em 2022, 59, atrás apenas do PL, com 99, e o PT, com 68. O enrosco mais recente no partido foi o caso envolvendo o ministro Juscelino Filho, das Comunicações, desgastado por irregularidades no recebimento de diárias e uso de jato da FAB para ir a leilões de cavalos em São Paulo. No cai não cai de Juscelino, a bancada do União, que vinha resmungando que a nomeação dele foi feita sob influência do senador Davi Alcolumbre (União-AP) sem consulta aos deputados, decidiu abraçá-lo e pressionou pela permanência. Coincidência ou não, na tarde do mesmo dia em que Lira fez avaliações negativas sobre a base aliada do governo, o ministro enfraquecido saiu de um encontro com Lula no Palácio do Planalto com o cargo garantido, até segunda ordem.
A permanência de Juscelino Filho no primeiro escalão do governo Lula se deu apesar de pressões públicas do PT, vocalizadas sobretudo pela presidente do partido, deputada Gleisi Hoffmann (PR), que defendia abertamente o afastamento. Lula contornou o caso para evitar esgarçar ainda mais a relação com o União, cujos votos são importantes demais para descartar neste momento. Diga-se, no entanto, que é tarefa complicada negociar com a sigla, às voltas com divisões internas desde que nasceu pela fusão de dois partidos à direita, PSL e DEM, e cujas bancadas incluem de bolsonaristas a parlamentares como o senador Sergio Moro (PR), responsável pelas condenações que levaram Lula à cadeia. Entre governistas, há a avaliação otimista de que o episódio Juscelino pode contribuir para amainar os espíritos na bancada do União, onde a maioria se declara independente. A ver.
Se as tratativas com o saco de gatos do União Brasil já não são das mais fáceis, o poder de barganha do partido pode aumentar caso seja formalizada uma federação negociada entre União e PP, o quarto partido que mais elegeu deputados. A aliança, que geraria um super-Centrão, pode criar uma bancada de 108 deputados federais, a maior da Câmara, e quinze senadores, um senhor trunfo na mesa de negociações com um governo que espera ver andar sua agenda econômica. As negociações, que vinham ocorrendo há mais de cinco meses, incluíram tratativas feitas em Las Vegas durante o Carnaval entre Arthur Lira, o presidente do PP, Ciro Nogueira, o vice-presidente do União Brasil, Antonio Rueda, e o líder do partido na Câmara, Elmar Nascimento (BA). Outra peça-chave na articulação é o ex-prefeito de Salvador, ACM Neto (União-BA).
Pelo desenho articulado, um partido ocuparia a presidência e a secretaria-geral da federação, enquanto o outro indicaria a vice-presidência e a tesouraria. Por ora, a ideia é que a federação seja independente diante do governo. Para evitar debandadas, discute-se um poder de veto para temas relativos a mudanças internas, como adesão à base governista, formação de coligações e lançamento de candidaturas. Por esse desenho, qualquer definição institucional teria de ter o aval das legendas. Por outro lado, negociações de ministérios diretamente com os parlamentares seguiriam acontecendo no ritmo atual. Por esse motivo, alas mais otimistas do governo vislumbram na federação uma oportunidade para trazer o PP para mais perto. “O acordo vai protagonizar a agenda política do país e dará estabilidade ao governo, porque assegura acelerar a agenda que traz o desenvolvimento de volta”, diz o líder do União, Elmar Nascimento. Há, contudo, arestas a aparar. O presidente do partido Luciano Bivar resiste a dividir poder com outros caciques e existem resistências estaduais à federação, cuja regra pressupõe que as siglas caminhem juntas por quatro anos, inclusive em eleições municipais. Parlamentares dos partidos dizem haver diferenças envolvendo políticos poderosos em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba, Maranhão e Paraná.
Independentemente do sucesso da empreitada, Lula já tem pela frente um super-Centrão. Uma complicação na relação do presidente com o grupo é que ela é bem diferente do cenário que ele encontrou em seu primeiro governo. Nas duas décadas que separam as gestões petistas, o Legislativo ganhou força e autonomia em relação ao Executivo. “Houve no governo Bolsonaro, com o orçamento secreto e outras medidas, uma redução do poder do presidente da República, e a transferência desse poder para o Legislativo, principalmente a Câmara”, diz o sociólogo Sergio Abranches. O analista e escritor foi quem cunhou, em 1988, o conceito de “presidencialismo de coalizão”, modelo em voga até hoje e no qual, em meio à pulverização partidária, o sistema eleitoral fortalece o grupo com maioria política no Congresso, “impondo” a formação de uma coalizão que dê sustentação ao presidente. A força atual do Legislativo tem origem nas emendas impositivas — criadas como forma de se reduzir a concentração de poder do Executivo por meio da garantia da execução obrigatória das verbas destinadas por parlamentares a estados e municípios — e foi potencializada sobremaneira com o chamado orçamento secreto. Com o mecanismo, a partir de 2019, começou-se a liberação de valores do Orçamento pelo relator a pedido de parlamentares, sem a discriminação dos nomes dos beneficiados. A ferramenta era tida por Lira como moeda de troca para acordos e acabou barrada pelo STF no fim de 2022. Lula, no entanto, segue refém da estrutura política herdada e tem de sentar-se à mesa com um presidente da Câmara mais poderoso do que nunca.
Boa parte do poder de Lira é relacionada à sua habilidade política (em bom português, jogo de cintura) e também, claro, à capacidade de distribuir verbas e cargos de forma competente. Sempre que questionado sobre o orçamento secreto, diz que ele atende às “necessidades mais urgentes da população”. O discurso é bem-feito, mas insuficiente para afastar a percepção de que não há um grande espírito republicano norteando parte dessas articulações. “Lira perdeu poder com o fim do orçamento secreto, e agora empreende um gesto de reconquistá-lo, criando dificuldade para Lula precisar da ajuda dele dentro da Câmara”, avalia Abranches.
Recentemente, o desagrado com o governo foi sobre nomeações emperradas na Casa Civil. Em um dos casos, um indicado pelo ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, foi barrado por um órgão do ministério de Rui Costa. Com uma conta reprovada, ele acabou dependendo de uma liminar do TCU para poder assumir. Outra queda de braço, esta entre Lira e o governo, deu-se na disputa pelo comando do Sebrae, órgão com orçamento bilionário e capilaridade municipal. Amigão de Lula, o ex-presidente do Sebrae Paulo Okamotto tenta a todo custo a renúncia de toda a diretoria, nomeada nos últimos dias do governo Bolsonaro. Por outro lado, dois dos três membros da cúpula tiveram anuência de Lira: o presidente Carlos Melles, ex-deputado pelo DEM, e a ex-deputada do PP Margarete Coelho. Uma reunião com conselheiros aconteceria no último dia 8, mas teve de ser adiada após a parcela governista não conseguir votos necessários.
Endurecer com o Centrão, pelo menos nas legislaturas mais recentes, não tem sido um bom negócio — basta ver o histórico do PT com o bloco. No embate mais grave, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha deflagrou o impeachment de Dilma Rousseff. Certa inércia do governo também tem sido vista com maus olhos pelos partidos do bloco. “Alexandre Padilha está centralizando uma programação mais clara do que o governo quer, mas, no que diz respeito a reformas, até agora não se dialogou nada”, diz o deputado Danilo Forte (União-CE), citando o Ministro das Relações Institucionais. Líder da bancada do PT na Câmara, Zeca Dirceu (PR) contemporiza e diz que Lira tem atuado para colocar pautas importantes em andamento: “O governo está evoluindo na montagem da base, não apenas com a ajuda de Lira, mas com boas conversas com o Republicanos e com o próprio PP”.
Não bastassem as dificuldades provocadas por um Legislativo mais forte e um Executivo até aqui lento, há o fogo amigo do PT mais radical, personificado pela atuação incendiária de Gleisi Hoffmann. Além de ter partido para o ataque no caso Juscelino Filho, ela tem criticado a política econômica e se posicionado ruidosamente contra a autonomia do Banco Central. Aparentemente, Gleisi tem carta branca de Lula para agir como age, pois até agora não recebeu nenhuma reprimenda — pública, pelo menos. Na avaliação de políticos nos bastidores, o “Lula paz e amor” ficou na campanha. Aquele que subiu o Palácio do Planalto no dia 1º de janeiro está se sentindo bastante confortável e empoderado. Dentro dessa percepção, Gleisi age não apenas para agradar aos petistas, mas também serve para Lula tentar mandar recados de que não está disposto a recuar nas suas convicções ideológicas (bem atrasadas, por sinal, sobretudo no campo econômico) e que resistirá a ceder todos os anéis em troca da formação da base parlamentar.
Se Arthur Lira estiver certo sobre o fato de o governo não ter maioria para passar no Congresso assuntos mais simples, Lula terá de fazer muito esforço para reverter o quadro. Depende disso a capacidade para a aprovação da reforma tributária e do novo arcabouço fiscal, temas fundamentais para o Brasil e que podem determinar o sucesso (ou insucesso) da atual administração. É importante que a promessa de campanha de restabelecer a harmonia entre os poderes seja, de fato, cumprida. Para um país traumatizado pelas brigas dos últimos anos, com destaque para os embates frequentes de Bolsonaro contra o STF, é urgente voltar à normalidade institucional, incluindo-se aí a construção do alicerce de uma coalizão política de alto nível, em torno de valores e princípios. O Brasil precisa de paz.
Com reportagem de Marcela Mattos
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832