Lar, doce lar: a vida de Sérgio Cabral na prisão domiciliar
O ex-governador revê familiares (inclusive a ex, Adriana Ancelmo), recebe auxílio financeiro e planeja o futuro
Enroscado em um extenso novelo de acusações, que incluem lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva, evasão de divisas, fraude em licitações e organização criminosa, o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral foi o último dos investigados da Operação Lava-Jato a deixar a prisão, em dezembro, depois de seis anos. Réu em 35 ações, ele acumula 23 condenações que somam mais de 400 anos de pena, mas em todas ainda cabem recursos. O que o mantinha na cadeia eram mandados de prisão preventiva, situação que trocou agora pelo regime de prisão domiciliar. O direito de voltar às ruas, porém, ainda depende de uma decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), que ele prevê para as próximas semanas.
Enquanto aguarda, o ex-governador, segundo amigos, trabalha com quatro frentes para voltar à ativa. Uma delas é usar sua experiência para fazer marketing político. Também pensa em prestar consultoria no ramo, onde atuou durante 23 anos. Faz parte de seus projetos inaugurar um canal no YouTube para tratar de assuntos da atualidade. “Até hoje há pessoas que respeitam muito os seus conselhos”, elogia o ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio Paulo Melo, que também já esteve preso. “Sem falar que ele tem uma cultura eclética, que vai do candomblé ao islamismo.” Há ainda intenção de escrever uma autobiografia (sua história, aliás, vai virar série em uma plataforma de streaming, em fase de pré-produção) — caberia lugar de destaque no enredo ao emblemático apartamento de 360 metros quadrados no Leblon, na frente do qual manifestantes montaram acampamento e onde foi preso em 2016, de propriedade de Adriana Ancelmo, a ex-mulher. A ideia de retornar ao imóvel, ao menos por ora, foi deixada de lado. Mesmo que 50% do aluguel seja retido pela Justiça, o restante irriga a conta da família.
Cabral vive hoje em um apartamento à beira-mar, em Copacabana, de 80 metros quadrados e serviço de flat (condomínio: 4 000 reais). Como a maior parte dos bens ligados à família, o lugar está encrencado na Justiça. Ele pertence à Araras Empreendimentos, empresa de sua primeira mulher, Susana Neves, que foi acusada de ter lavado dinheiro para o ex, acabou absolvida, mas o Ministério Público recorreu. Arrolado como garantia de eventual indenização aos cofres públicos, o imóvel não pode ser vendido. Mas o morador não se queixa. “Meu pai conseguiu autorização para usar a área comum do condomínio em que está e não vai se mudar”, diz Marco Antônio, ex-deputado federal que não conseguiu se reeleger em 2022.
A retomada da normalidade possível anda de mãos dadas com a memória do passado de antes da cadeia. Dos companheiros do período de mandachuva fluminense, Cabral costuma mencionar duas mágoas insuperáveis: do prefeito do Rio, Eduardo Paes, pelo distanciamento mantido durante seus 2 223 dias de prisão, e do sucessor, Luiz Fernando Pezão, pela “péssima gestão” de seu suposto legado. “Se depender dele, morre sem falar com Pezão”, garante um aliado. Voltar à política não está nos planos, pelo menos enquanto não se ver livre da montanha de processos. Uma de suas obsessões no momento é questionar a parcialidade do juiz Marcelo Bretas, responsável pela Lava-Jato no Rio e autor da maioria das sentenças que lhe foram aplicadas. Alvo de um procedimento administrativo disciplinar por supostas falhas na condução de processos, Bretas será julgado pelo Conselho Nacional de Justiça neste mês e pode ser afastado do cargo. Isso contribuiria para a possível anulação de algumas ações contra Cabral, mas ele ainda não dormiria totalmente sossegado: se condenado nas outras instâncias, pode regressar ao xadrez.
Por isso, seus movimentos são lentos. O ex-governador pode retomar seus contatos, desde que a pessoa não esteja envolvida nos processos. Quem o viu afirma que se encontra melhor fisicamente do que quando entrou na cadeia, tendo se tornado um malhador contumaz e perdido 20 dos 114 quilos que tinha. A atividade física começou com o levantamento de pesos improvisados — cabos de vassoura e garrafas plásticas com água — no presídio Bangu 8. No Batalhão da PM em que passou os últimos meses, caminhava no campinho de futebol.
Nos primeiros tempos fora das grades, Cabral, que em 2018 chegou a ser transferido de cadeia diante da denúncia de haver montado um cineminha (com TV de 65 polegadas), já devorou várias séries, entre elas a espanhola Machos Alfa (leia na pág. 62).No rol das visitas que recebe regularmente estão o pai, o pesquisador e jornalista Sérgio Cabral — que sofre de Alzheimer —, os irmãos, Adriana e os filhos que tem com ela, agora com 17 e 20 anos. A ex-primeira-dama, que também passou um tempo na cadeia e em prisão domiciliar e sobre quem Cabral declarou ter conhecimento do esquema de caixa 2 no governo, já pode circular sem restrições, voltou à advocacia e se reaproximou do ex. “Somos muito amigos. Ele é pai dos meus filhos e eu não poderia ter escolhido melhor”, disse a VEJA.
À frente do governo estadual entre 2007 e 2014, Cabral se tornou um dos maiores símbolos de corrupção e ostentação no âmbito da Lava-Jato. A vida nababesca, que incluía o circuito Rio-Paris-Mônaco e escapulidas frequentes — no helicóptero oficial — para a casa de praia em Mangaratiba, no Rio, veio à tona durante as investigações. Entre outras extravagâncias, elas revelaram que Adriana havia ganhado um anel da joalheria Van Cleef & Arpels (de 1,2 milhão de reais em valores de hoje) pago por Fernando Cavendish, da construtora Delta, outro envolvido nas denúncias. O fausto, é claro, acabou. Pessoas próximas a Cabral, que teve seus imóveis, joias e carros leiloados pela Justiça, contam que ele se sustenta com uma vaquinha rateada entre parentes e amigos.
De tornozeleira, desfruta a vida fora da cadeia discretamente, nos limites do prédio onde mora. Cabral brindou a chegada de 2023 ao lado de pelo menos dez parentes, entre eles a família do filho mais velho, Marco Antônio, e de Adriana — ela, aliás, foi a responsável pela ceia da passagem de ano, com presunto, peru e bacalhau, sinal de que voltaram às boas depois da turbulenta separação. Ela também tem mandado entregar diariamente uma refeição para o ex. Aos poucos, Cabral reaprende a viver em liberdade — evidentemente, nada comparável aos tempos de outrora.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827