Legalização da indústria de apostas entra na pauta do novo governo Lula
De olho em novas receitas, futura gestão coloca na mesa a possibilidade de liberar os jogos de azar, hoje proibidos por causa da pressão conservadora
Foi em 30 de abril de 1946, no Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, que aconteceu a última partida de roleta em um cassino legalizado em território brasileiro. Naquele dia, por influência de Carmela Dutra (a Dona Santinha), católica devota, do ministro da Justiça, Carlos Luz, e do arcebispo dom Jayme Câmara, o presidente Eurico Gaspar Dutra baixou o Decreto-Lei 9.215 proibindo a exploração de jogos de azar sob o argumento de que a prática levava à degradação do ser humano. A medida fechou as portas de 71 cassinos, incluindo o da Urca, no mesmo Rio, palco de uma longa lista de artistas que incluía Ary Barroso, Carmen Miranda, Dick Farney e a franco-americana Josephine Baker. Quase oitenta anos depois, ainda sob resistência conservadora, o Brasil caminha para voltar a legalizar a indústria do jogo — a pauta entrou no relatório final da equipe de transição de Lula, sinal de que a sorte pode virar para a turma das apostas. “É algo com que o governo terá de lidar com certa urgência”, afirma Luiz Barretto, ex-ministro do Turismo e coordenador do grupo de trabalho.
O caminho para girar de novo a roleta não tem sido fácil, porque a legalização de jogos de azar é ainda um grande tabu político no país. A última refugada foi protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro, que deixará o cargo sem assinar a regulamentação das apostas esportivas on-line. O negócio dorme nas gavetas do governo há quatro anos. Elas foram legalizadas em 2018, no fim do governo Michel Temer, que deu um prazo de até 2022 para sua regulamentação — o tempo acabou em 13 de dezembro. O decreto já tinha a aprovação da Casa Civil e do Ministério da Economia, mas o presidente escolheu não assiná-lo. Primeiro, antes da eleição, por medo de perder votos evangélicos. Depois, para não arcar com o ônus da liberação e deixar o bônus para Lula.
A não assinatura por Bolsonaro pode ter agradado ao público conservador, mas frustrou muita gente. Desde a legalização, o faturamento anual do mercado de apostas esportivas saltou de 2 bilhões para 15 bilhões de reais, e as casas do tipo dominaram os principais patrocínios do esporte no país. As empresas esperavam a regulamentação para fixar sede no Brasil com segurança jurídica, uma vez que o complemento legal iria estipular o preço da licença a ser pago à União para operar no território nacional e estabelecer órgãos reguladores da atividade, exigências de monitoramento das apostas contra manipulação de resultados, políticas de combate à lavagem de dinheiro e princípios de jogo responsável. Ao longo desses quatro anos, os sites operaram com CNPJs de fora, a maioria em offshores. As transações ocorrem no exterior, a atividade não é fiscalizada por órgãos brasileiros e as empresas não pagam impostos. Além disso, problemas judiciais não podem ser resolvidos em tribunais brasileiros. No cenário atual, perdem todos: o governo que não arrecada, os jogadores que não têm como reclamar quando são vítimas de golpes e os grupos sérios envolvidos no mercado.
A possibilidade de outras liberações para além das apostas esportivas on-line também está engavetada, igualmente por razões políticas. Essa lista inclui jogo do bicho, bingo, cassinos e apostas on-line (não só esportivas). O projeto de lei que trata do tema, o 442/91 (isso mesmo, ele é de 1991), foi aprovado na Câmara em fevereiro e espera ser pautado no Senado, o que foi adiado porque o presidente, Rodrigo Pacheco, precisa dos votos dos conservadores para se reeleger à presidência da Casa em fevereiro. Ainda pesam contra o andamento rápido as discordâncias entre os senadores em itens como a forma de rateio do dinheiro dos jogos. “O tema é controverso e tem pontos divergentes que exigem negociações, mas acredito que a maioria dos senadores é favorável à legalização. E acho que o novo governo não vai se opor à criação de novas receitas”, diz o senador Angelo Coronel (PSD-BA), cotado para ser o relator.
E, de fato, os sinais vindos do futuro governo são nessa direção. Prova disso é que a regulamentação do gambling foi incluída no relatório do grupo de transição, que tinha como um dos membros o deputado Felipe Carreras (PSB-PE), que relatou o PL na Câmara. Outra sinalização foi feita pelo ex-ministro Edinho Silva, próximo a Lula, que defendeu a taxação de jogos e a destinação do dinheiro para a educação. “Como é que nós estamos falando de crianças fora da escola e talvez hoje a maior avalanche de apostas que o Brasil já viveu sendo feita fora do país sem nenhuma tributação?”, questionou em entrevista a um programa de TV. Nos bastidores da transição, é consenso que a maioria das equipes do Turismo e da Economia joga a favor da liberação da atividade por conta das várias vantagens financeiras — a legalização dos jogos prevê, inclusive, o repasse de recursos para a Embratur. A maior resistência, além dos religiosos, fica por conta de gente ligada à segurança pública, que ainda tem um pé atrás em relação à possibilidade de os jogos estarem atrelados ao crime organizado.
A discussão sobre a legalização dos jogos fica até um tanto surreal quando a prática se torna a cada dia mais visível. Mesmo não sendo tributadas nem fiscalizadas, as casas de apostas esportivas têm as suas marcas estampadas nas camisas dos maiores clubes de futebol, banners nas principais competições e estádios e publicidade nas maiores emissoras. Tornar o mercado legal e regulado, desde que com as devidas ressalvas para combater o vício e impedir atuações criminosas, é uma boa chance de não só aumentar a arrecadação do governo, como tornar mais segura a atividade, tanto para o apostador quanto para o empresário. O futuro governo está com os dados nas mãos e parece disposto a fazer a jogada certa.
Publicado em VEJA de 4 de janeiro de 2023, edição nº 2822