Antes de vestir a toga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), o pastor presbiteriano André Mendonça enfrentou a mais longa via-crúcis de um indicado para o cargo na história do país: desde a escolha de seu nome pelo presidente Jair Bolsonaro até a aprovação pelo Senado, transcorreram 141 dias. Durante esse período, Mendonça, ex-advogado-geral da União e ex-ministro da Justiça, enfrentou a resistência obstinada do presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), que postergou quanto pôde a sabatina do novo calouro do STF. Em público, Alcolumbre sempre negou ter algum tipo de restrição ao indicado. Em conversas privadas, no entanto, ele prometeu “derrotar o governo” e garantiu em diversas ocasiões ter o número de votos necessários para impedir a aprovação de Mendonça, mesmo com o histórico da Casa apontando no sentido contrário — a última vez que o Senado barrou um nome para o STF foi em 1894, no governo do marechal Floriano Peixoto. Na época, o estado do Amapá nem sequer existia.
O desfecho da história é conhecido. Em dezembro, 47 dos 81 senadores avalizaram a indicação de Mendonça, seis a mais do que o mínimo necessário. Alcolumbre saiu derrotado e, se depender dos evangélicos, colherá um novo revés nas eleições de 2022. O grupo religioso quer a desforra e articula o lançamento de uma candidatura para impedir a reeleição do senador. “Vamos fechar um bloco para peitar o Alcolumbre. A gente precisa dar o troco para ele sentir que a política tem disto: a gente colhe o que semeia”, diz o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), cotado para ser o próximo presidente da Frente Parlamentar Evangélica. Um dos nomes cogitados para disputar o Senado é o do deputado federal Jorielson, que é pastor da Assembleia de Deus e filiado ao PL, o mesmo partido de Jair Bolsonaro. Outra possibilidade é o pastor Guaracy, uma liderança local filiada ao PTB. Até a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, disse recentemente, meio que em tom de brincadeira, que pode concorrer ao Senado pelo Amapá. “O Alcolumbre traiu os evangélicos e acredita que o nosso segmento é alienado e vai esquecer o que ele fez contra o André Mendonça, mas não temos memória curta”, afirma Jorielson.
De acordo com o Datafolha, os evangélicos representam 31% do eleitorado brasileiro. No Amapá, a proporção é ainda maior, na faixa de 40%. O ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, chegou a lançar mão desses dados para convencer Alcolumbre a destravar a indicação de Mendonça, lembrando que a oposição dele ao escolhido poderia lhe trazer prejuízos eleitorais. O senador não recuou. Agora, terá de lidar com a ameaça de vingança. A chance de não ser reeleito, conforme o cientista político Ivan Silva, da Universidade Federal do Amapá, é real. “O capital político de Alcolumbre está em queda, e a situação dele se complicou no estado. Considerando que o voto evangélico foi fundamental para a sua eleição em 2014, o senador, de fato, subestimou a sua base. Foi um erro estratégico não levar em consideração o peso do voto cristão”, diz Silva. O governo até tentou impedir esse “erro estratégico”. Enquanto a sabatina de Mendonça não era marcada, assessores do Palácio do Planalto procuraram Alcolumbre para saber o que ele queria para destravar a indicação na CCJ, mas não receberam uma resposta clara e cristalina.
Também nunca foi esclarecido o que levou o senador a finalmente marcar a sabatina e permitir a votação de Mendonça pelo Senado. Sabe-se apenas que, numa dessas coincidências típicas de Brasília, o caso andou depois de vazar uma planilha dando conta de que Alcolumbre teve o direito de direcionar, desde 2019, 1 bilhão de reais em emendas de relator para o Amapá. Em resposta, o senador afirmou que os números não eram verdadeiros. Na busca por revanche, os evangélicos também cogitam fustigar outros alvos, sobretudo os ministros Ciro Nogueira (Casa Civil), Flávia Arruda (Secretaria de Governo) e Fábio Faria (Comunicações). Um dos principais conselheiros do presidente Bolsonaro, o pastor Silas Malafaia diz que o trio articulou para impedir a nomeação de Mendonça e emplacar o procurador-geral da República, Augusto Aras, no Supremo. Os três ministros negam. De forma reservada, alguns evangélicos também demonstram insatisfação com o senador Flávio Bolsonaro, que, segundo versão que circulou entre os religiosos, não estava empenhado de corpo e alma pela aprovação de Mendonça.
De fato, Flávio de início preferia outro nome, mas por determinação do pai passou a trabalhar pelo indicado “terrivelmente evangélico” e a fazer referências frequentes a Deus em suas declarações públicas. Para o Zero Um, a posse de Mendonça no Supremo foi a maior vitória do governo no ano passado. “A rejeição do nome poderia iniciar um processo de desgaste do governo em diversas outras pautas. Aconteceu o contrário, uma grande demonstração de força por parte do governo, porque ele cumpriu a promessa de campanha de colocar um evangélico na mais alta Corte do Judiciário brasileiro. Diversas igrejas colocaram os seus membros de joelhos pedindo a Deus pela aprovação”, afirma Flávio. Nos bastidores, o filho do presidente tenta reconstruir as pontes com Alcolumbre. Há até a promessa de ajudá-lo a conquistar a reeleição ao Senado com o que for necessário. Resta saber se essa promessa será mantida quando os evangélicos souberem das conversas entre os dois. Na política, raramente há espaço para o perdão.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773